DOMINGO SOMÁTICO

Terapia corporal que foi moda
nos anos 70 e 80 ainda atrai interessados

Marcelo Leal, terapeuta: ‘‘Ideologia autoritária a respeito do corpo’’

Oficina promove desbloqueio das ‘‘couraças emocionais’’


''Já participei de oficinas de Soma para mais de cem pessoas'', lembra o somaterapeuta Marcelo Leal, 42 anos. A Somaterapia, ou simplesmente Soma, foi moda no Brasil entre o fim dos anos 70 e o início dos 90, quando seu criador, o psiquiatra e escritor Roberto Freire, emplacava um best-seller depois do outro. São dele livros como Cleo e Daniel, Ame e Dê Vexame e Sem Tesão Não Há Solução, considerados libertários por toda uma geração de leitores.

Nos últimos tempos, porém, a Soma saiu um pouco de cena. Novas terapias alternativas surgiram com força total, e a produção literária de Freire foi diminuindo até sua morte, em maio deste ano. Por outro lado, o interesse do meio acadêmico por suas idéias tem crescido, inclusive fora do país - há grupos de somaterapia em Londres, Lisboa, Barcelona e Madrid.

A reportagem da FOLHA acompanhou uma oficina de demonstração ''somática'' realizada no domingo, em Curitiba, e comprovou que o legado de Bigode (como Freire era chamado pelos amigos) continua vivo. Era o segundo dia do encontro, quando os dez participantes, já devidamente apresentados, praticaram alguns dos exercícios mais básicos do processo terapêutico.

Surgida em meio à ditadura militar, período em que Freire se dedicou à militância política, a Soma é uma terapia corporal, em grupo e de fundo anarquista. Suas bases teóricas vêm principalmente das pesquisas de Wilhelm Reich (1897-1957), discípulo dissidente de Freud cuja principal tese dava conta de que os problemas emocionais são causados pela repressão sexual.

Reich acreditava que a moral familiar e religiosa é um instrumento de dominação e manutenção do poder. Reprimido, o organismo humano desenvolve ''couraças'' onde se acumulam as energias geradas pelos mecanismos de defesa. E somente o desbloqueio dessas tensões é capaz de libertar as pessoas de suas dificuldades. Para isso, é preciso tirar o paciente do divã e colocá-lo de pé e em movimento.

Na Somaterapia, essa prática se dá por meio de elementos retirados do teatro e, acima de tudo, da capoeira. ''A ludicidade da capoeira possibilita uma autonomia maior do corpo'', diz Marcelo Leal logo no início do encontro, realizado em uma academia de dança no bairro do Juvevê. Em seguida, ele inicia uma série de exercícios voltados, entre outras coisas, para a perda do medo da exposição e do ridículo.

Ao longo da tarde, o somaterapeuta lança no ar uma série de conceitos ''libertários'': ''O poder já está introjetado na gente'', ''Existe toda uma ideologia autoritária a respeito do corpo'', ''Preciso ir atrás das coisas que eu quero'', ''Desde a infância, criamos armaduras para nos defender do meio hostil'', ''Não podemos aceitar as coisas impostas de cima para baixo'', ''Temos de descobrir o que nos dá prazer'', etc.

Formado em Arquitetura, Leal conheceu a Soma na faculdade, por meio de um livro de Roberto Freire. Identificou-se com as idéias do escritor, mas não imaginou que havia outros interessados em Florianópolis, onde estudava. Até encontrar um cartaz divulgando um grupo somático na cidade, ao qual se integrou. Depois de passar três anos como assistente de outros terapeutas (entre eles o próprio Freire), formou-se na área e hoje tem clientes em Santa Catarina, Paraná e São Paulo.

Ele explica que um grupo de somaterapia dura em torno de um ano e meio. As sessões são mensais e duram 12 horas - no caso de Curitiba, divididas entre o sábado e o domingo. Ao longo do processo, são desenvolvidos cerca de 30 exercícios, 80% deles corporais. O restante do tempo é dedicado à ''leitura'', momento em que os clientes levantam problemas e os discutem coletivamente.

CINCO SENTIDOS

Após conduzir o aquecimento com capoeira, Leal instrui os participantes a fazer o que ele chama de ''exercício dos cinco sentidos''. Para começar, todos devem se observar e elencar os três colegas que considera mais interessantes, por quaisquer motivos. Cada etapa é desenvolvida com uma dessas pessoas, em ordem decrescente de interesse, por assim dizer.

O terapeuta explica que se trata de uma forma de aprender a lidar com a rejeição. ''Se alguém não o escolheu, não é porque não gosta de você. Ele só não quer fazer o exercício com você'', afirma.

Na sequência, os parceiros se sentam no chão, frente a frente, com as pernas praticamente entrelaçadas. Com os rostos quase colados, conversam sobre assuntos aleatórios. Depois, são incentivados a sussurar alguma coisa no ouvido do colega. É a fase auditiva do trabalho.

Na etapa visual, deita-se com a cabeça no colo do outro. A tarefa consiste em observar a face do colega. Ou melhor, fazer um mapeamento afetivo do rosto, como diz Leal. ''Lembre que você não está olhando para qualquer lugar. Vocês são dois corpos, dois somas humanos'', reforça.

Na mesma posição também é feito o mapeamento tátil da face do parceiro. Mais uma vez, o terapeuta interfere: ''É um companheiro de trabalho, e não um boneco, que está na sua frente. Não faça massagem, nem carinho. Apenas toque''. Como se trata de uma demonstração, o exercício termina sem as fases olfativa e gustativa. ''Para não cansar o pessoal'', diz Leal.

Por fim, a turma é organizada em novas duplas, que devem se revezar em uma espécie de jogo de confiança. A idéia é que um sirva de guia para o outro, que, de olhos fechados, fará um passeio de 10 minutos do lado de fora da academia.

Encerrada a parte corporal do encontro, é hora da ''leitura'', da troca de impressões. E quando alguém se refere a um colega na terceira pessoa, o terapeuta adverte: ''Fale diretamente, olhando para o outro. Seja direto e franco''. A idéia, segundo Leal, é romper com os pactos de mediocridade estabelecidos no dia-a-dia.

Ele conclui a oficina convidando os presentes a integrar o próximo grupo curitibano de Soma. Descreve minuciosamente os detalhes do processo e marca para novembro uma segunda reunião, em que espera a adesão definitiva das pessoas - e de novos interessados.

Também aproveita para rebater alguns pontos polêmicos sobre a terapia levantados pela reportagem.''O valor mensal (R$ 180,00) não cobre apenas a minha remuneração. Ainda tenho de pagar o aluguel do espaço, passagens e hospedagem'', esclarece.

Quanto ao estigma de que na somaterapria ''todo mundo transa com todo mundo'', ele brinca: ''Se rolar um bacanal, me convidem, porque eu nunca participei de nenhum''.

No dia seguinte, por telefone, duas participantes falaram sobre a experiência. Para a estudante de Artes Cênicas Marina Nucci, 22, a Soma pode ajudá-la a ''se descobrir melhor''. Ela fez a oficina acompanhada do namorado e colega de faculdade Iury, 18, e diz que ambos pretendem integrar o grupo em vias de formação.

''Faço terapia tradicional e acho que esse trabalho com o corpo pode me acrescentar muito'', afirma a atriz, que conheceu as idéias de Freire a partir de textos indicados por professores.

A arquiteta Annamaria Pires, 55, ficou sabendo do encontro pela internet e se inscreveu junto com a irmã, a engenheira Elizabeth. As duas também pensam em seguir com o grupo. ''Me interessei por essa visão integrada do corpo, do psicológico e do social'', diz.

Ela acredita que, na Soma, poderá dissolver suas ''couraças''. ''Minha proposta é fazer um tipo de 'saneamento básico' consciente em mim mesmo'', diverte-se.

''COMO NÃO SER UM IDIOTA''

A reportagem ainda conversou com dois ex-integrantes de grupos somáticos. Um deles, o artista plástico Lauro Borges, 45, tem planos de se tornar terapeuta. Para isso, atua como assistente de Marcelo Leal em suas atividades na cidade. ''O primeiro passo é refazer toda a terapia'', explica Lauro, que participou de uma das primeiras turmas de Curitiba.

Interessado por filosofias orientais, artes marciais e bioenergética, Lauro conheceu a obra literária de Roberto Freire por meio de uma amiga. Acabou se aproximando do escritor e virando um representante da somaterapia por aqui. ''Hoje eu sei qual é o meu programa neurótico e como não ser um idiota. Porque o caráter não se arranca, a gente apenas aprende a lidar com ele'', afirma.

Integrante do último grupo formado em Curitiba, encerrado em maio, a atriz e artista visual Giorgia Conceição confessa que superou os próprios preconceitos para ingressar na terapia. ''Na minha cabeça, a Soma era uma coisa datada, de bicho-grilo. Mas aos poucos fui descobrindo que ela é atual, está sempre se renovando com as pesquisas feitas pelo terapeutas'', diz.

Giorgia também conta que a somaterapia a fez perder o medo de investir na carreira artística. ''A Soma mostra que você pode ter um estilo de vida diferente mesmo em uma sociedade que não está tão aberta assim''.

O CONTRÁRIO DA MORTE

Somaterapia à parte, Roberto Freire (1927-2008) é um dos símbolos da contracultura no Brasil. Ousado, polêmico e radical, levou uma vida intensa tanto no plano intelectual quanto no pessoal. Formado em Medicina, com especialização em Psiquiatria, clinicou em São Paulo até descobrir o teatro.

Atuou como dramaturgo, roteirista de TV, cineasta, jurado de festivais de MPB e jornalista (venceu o Prêmio Esso de Reportagem quando trabalhou na revista Realidade e colaboração na fundação da Caros Amigos). Em paralelo, militou na organização clandestina Ação Popular. Foi preso e torturado. Ainda assim, detestava as patrulhas ideológicas de esquerda.

Com inúmeros problemas de saúde, Freire se retirou de cena em meados da década passada. Passou os últimos anos esquecido e internado num asilo, em contato apenas com os filhos e amigos próximos. Frasista nato, deixa uma série de pensamentos antológicos. Entre eles o que resume sua trajetória: ''É o amor, e não a vida, o contrário da morte''.


por OMAR GODOY
com fotos de MAURO FRASSON
outubro de 2008

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