Durão, diretor local dos Abutres: "fio desencapado"
O Brasil caminha para ser o quarto maior produtor de motocicletas do mundo, perdendo apenas para China, Japão e Índia. Cerca de 2 milhões de unidades foram vendidas apenas neste ano, entre modelos populares e de luxo. Com isso, a frota nacional deve bater na casa dos 9 milhões de veículos de duas rodas - praticamente o dobro do número registrado em 2007.
Dentro de poucos anos, serão vendidas mais motos do que carros no País. Esse crescimento se deve, basicamente, a três fatores: aumento do poder aquisitivo, preços mais acessíveis e facilidade de financiamento. Mas, por trás desse boom, há também uma mudança de comportamento.
Um dos símbolos da contracultura, a motocicleta deixou de ser sinônimo de rebeldia. Tornou-se uma alternativa de transporte e o ganha-pão de muita gente. De quebra, virou opção de lazer nos fins de semana. Nunca se viu tantos comboios de motociclistas passeando pelas estradas.
Os motoclubes são uma febre em todo o Brasil. Só em Curitiba existem mais de 100, entre filiais de grandes grupos nacionais (as chamadas facções) e pequenas turmas de amigos. Cada um com seu perfil, estatuto e, é claro, colete de couro.
Durante muito tempo, os clubes rivalizavam e chegavam às vias de fato. Até que, em 1987, o líder do grupo Balaios foi vítima de um atentado a bomba no Rio de Janeiro. Houve um processo de pacificação e a convivência hoje é relativamente tranqüila.
A bronca, agora, tem viés conceitual. Os membros dos clubes ditos ''de raiz'' acreditam que os mais novos não vão durar muito tempo. Para eles, tudo não passa de um modismo seguido por gente que não compreende o verdadeiro estilo de vida motoclubista.
''A moto você compra. O espírito, não'', diz o professor aposentado Alexandre Durão, 58 anos, diretor da facção curitibana dos Abutres, um dos maiores motoclubes do País. ''Não acho que os outros estejam errados. Mas tem muitos por aí que apenas colocam um colete e se travestem de motociclistas na sexta-feira'', emenda.
De acordo com Durão, um abutre se sente parte de uma sociedade alternativa. Mesmo quando não está com o grupo. ''A gente vive esse espírito 24 horas. É uma questão de postura'', afirma.
E que postura é essa, que une desde desempregados a juízes de direito? ''Isso a gente não divulga, mas posso garantir que é tudo relacionado com o bem-viver'', desconversa.
As brigas, então, acabaram? ''Você já viu um fio desencapado? Ele está parado ali. Se você colocar a mão, vai levar um choque'', ironiza.
Integrante da facção local do motoclube Fator Mutante, Cláudio Adriano, 28, acredita que é tudo uma questão de ''pegada''. Para ele, o verdadeiro motoclubista não se importa com conforto. O contrário dos ''zé roelas'' que fundam clubes ''coxinhas'' só para ir ao litoral e voltar.
Salsicha, como é mais conhecido, trabalha como motorista e sonha em ter uma Harley Davidson. Juntou-se ao Fator Mutante justamente porque o grupo não faz distinção entre tipos de motocicletas. Ele conta que chegou a viajar para São Paulo na garupa de um amigo, pois não tinha dinheiro para ir com a própria moto. ''Somos todos irmãos. Se um não tiver grana, os outros inteiram a pinga dele'', diz.
Casado duas vezes e pai de um menino de 8 anos, Salsicha rompeu com a segunda mulher por causa do motoclube. Chegou a ficar um tempo afastado do grupo a pedido da parceira, mas a falta dos amigos acabou pesando. ''Eu sentia o mesmo amor por ela e pelo clube. Só que, de um lado, tinha uma pessoa só. Do outro, tinham várias'', justifica.
CADA UM NA SUA
Na outra pista, os motoclubistas, digamos, moderados não escondem que só estão nessa para espairecer. "É mais lazer e entretenimento do que estilo de vida", diz a administradora de empresas Danielle Carstens, 30. Ela e o marido, o engenheiro Luciano, estão entre os fundadores do motoclube Águias Indomáveis, criado em 2003.
Danielle admite que há um certo preconceito de seu grupo com os "cegezeiros" (donos de motos CG, mais baratas e menos potentes). Nos encontros de motociclistas, os dois extremos não se misturam muito. "Eles devem nos ver como um bando de almofadinhas que só querem passear no fim de semana. E isso não é mentira", brinca.
Ela inclui os Águias Indomáveis na categoria dos grupos "família", cada vez mais comuns nas estradas do País. O que não chega a ser uma surpresa, visto que até motoclubes gospel já viajam por aí. Mas uma turma só de policiais seria algo impensável há 20 anos.
É justamente essa a marca registrada dos Paladinos, formado em sua maioria por delegados, investigadores, coronéis, sargentos, etc. Muitos dos membros nem tinham motos antes de conhecer o grupo, como explica o policial civil Almir Alberti, 50, da Delegacia de Furtos e Roubos. "Tem um coronel amigo nosso, por exemplo, que não se deu bem com a moto e hoje está feliz com seu triciclo".
Nas viagens, ele conta, as mulheres e filhos seguem o grupo em vans alugadas. E se o destino é um encontro entre motoclubes, é quase certo que os Paladinos serão vistos com uma certa desconfiança. "Algumas pessoas sentem receio, sim. Os Abutres, por exemplo, sempre ficam meio arredios", diz.
Alberti ainda revela que não facilita a vida de eventuais arruaceiros só porque são da mesma tribo. "Independentemente de ser de motoclube, a gente tem de enquadrar quem estiver armado ou portando droga. Todos já estão cientes disso".
Para o policial, o surgimento de grupos independentes é uma reação à rigidez dos mais tradicionais. Em muitos deles, os novatos (também chamados de prósperos) são tratados como calouros e devem se submeter a uma série de provações. "Já vi homens de barba branca varrendo o chão, limpando motos e comprando cerveja enquanto os outros ficam de perna para o ar. Isso é uma humilhação", diz.
Durão, dos Abutres, rebate. "Em qualquer sociedade existe hierarquia. Você não faz gentilezas para as pessoas mais velhas?". Salsicha pensa da mesma forma. "A gente coloca o próspero à prova mesmo, para saber se ele está disposto a ajudar". A intenção, eles garantem, é que todos sirvam ao grupo.
Nesse debate, apenas uma coisa é certa: vai faltar estrada para tanta gente
por OMAR GODOY
com fotos de DIEGO SINGH
dezembro de 2008
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