GUITARRAS E RESPONSABILIDADES

Ser adulto e ter uma banda de rock
deixou de ser tabu no underground

Alexandra é bancária, mãe de uma menina e guitarrista do Subburbia

O geólogo André, do ruído/mm: amigos "estabilizados" estão voltando a tocar

O médico Erasmo, do Tristessa: neurocirurgia e música barulhenta


Após os seis anos da faculdade, e outros cinco de residência, o médico Erasmo Barros, 31 anos, finalmente pode se considerar um neurocirurgião. "É a formação mais longa da Medicina", explica o doutor, que também termina em breve um mestrado em cirurgia.

Abrir e operar o crânio dos outros, convenhamos, é uma tremenda responsabilidade. São cerca de cem horas de trabalho semanais, ele conta, marcadas por muita tensão e estresse. Não é de se admirar que muitos médicos simplesmente não conseguem se desconectar quando saem do centro cirúrgico. "Se tirar a Medicina, muito deles não têm mais nada", diz.

Com Erasmo é diferente. Ao menos uma vez por semana, o neurocirurgião se encontra com três amigos (dois advogados e um arquiteto) para tocar música alta, pesada e barulhenta. Eles formam o Tristessa, banda que transita pelo underground roqueiro da cidade desde 2003.

A exemplo do quarteto, centenas de outro grupos do cenário independente, ou alternativo, são formados por artistas que se dividem entre a música e a carreira profissional. E não está se falando, aqui, de atividades ligadas à comunicação. Afinal, jornalistas, publicitários e designers sempre estiveram envolvidos no meio artístico.

Tampouco se trata de um mero hobby. Essas bandas compõem seu próprio material, produzem shows e festivais, lançam discos e excursionam pelo Brasil (algumas chegam ao exterior). "Hobby é para quem coleciona selo, alimenta peixe. Para mim, o rock e a medicina se complementam", afirma Erasmo.

Alexandra Sakaguchi, 27, concorda. "Não considero um hobby. A gente leva a banda muito a sério", diz a integrante do Subburbia. Bancária há nove anos, ela também estuda Direito. "É um curso que facilita o acesso a concursos públicos", explica a guitarrista, que busca uma condição estável.

Ela revela que nem sempre foi fácil conciliar as duas coisas. Sobretudo pela pressão da família, japonesa e de costumes tradicionais. "Toco em bandas desde os 16 anos, mas meus pais nunca aprovaram. Quando minha filha nasceu, ficou ainda pior", conta a mãe de Clarice, hoje com 7 anos.

Como se vê, a administração do tempo não é o maior problema para os músicos. E o fato de ser adulto e tocar rock and roll também começa a ser encarado com naturalidade pela sociedade. "Todo adulto tem uma válvula de escape, e o mercado de trabalho não vê mais isso como um ponto negativo. Muito pelo contrário", afirma Bruno Zagonel, 29, baterista do Criaturas e engenheiro de uma companhia multinacional.

A verdade é que ninguém mais precisa largar o rock só porque se casou, teve filhos e conseguiu um emprego respeitável. E mais: há quem tenha se estabilizado e retornado à vida nos palcos alternativos. "Conheço gente que voltou a ter banda depois que os filhos cresceram um pouco", conta o geólogo André Ramiro, 28, pai de um menino e integrante dos grupos ruído/mm (com minúsculas mesmo) e Índios Eletrônicos.

Para Erasmo, é tudo uma questão de postura. "Você tem que escolher. Ou assume suas responsabilidades, ou vira um Peter Pan que não aceita envelhecer e permanece com aquela ilusão do sucesso. Se você passou dos 25 anos e ainda não vendeu pelo menos umas 20 mil cópias, não vai ser um rockstar", brinca.

Depois de cortar um dobrado ao conviver com colegas de grupo bem mais jovens (e sem maiores preocupações na vida), o médico promoveu uma troca geral de integrantes. Hoje, afirma que o Tristessa finalmente chegou à formação ideal. "Todos são casados, trabalham e querem estar cedo em casa para descansar. É a banda que eu sempre quis".

HORA DE OPTAR

Oneide Diedrich, 33, foi vocalista do Pelebrói Não Sei?, um dos grupos mais populares do underground local nesta década. Mas travava uma espécie de "guerra interior", como se tivesse de optar por uma das duas atividades. Chegou à conclusão de que não havia escolha.

"Quem é compositor entende isso melhor. Você não decide se vai compor uma música. É ela que decide aparecer", explica o psicólogo, que tem formação em Psicanálise e é sócio de uma clínica.

No melhor momento do Pelebrói, quando o grupo ganhou reconhecimento fora da cidade, Oneide se viu "obrigado a fazer sucesso". Como era de se esperar, o processo culminou no fim da banda - e ele percebeu que era hora de investir na clínica.

A inspiração, é claro, não cessou. Surgiu então um novo projeto, Diedrich e os Marlenes, cujos músicos compartilham do mesmo dia-a-dia "adulto". " Um dos caras tem um filho adolescente que já toca em uma banda", conta o artista-analista, que ainda chama a atenção para a longevidade de ídolos como Bob Dylan e os Rolling Stones. "Eles são a prova de que o rock também envelheceu", afirma.

Como Oneide, o advogado Gustavo Rodrigues, 39, acredita que a atração pelos porões do rock é irreversível. "Deve ser um cromossomo defeituoso", ironiza o baixista e vocalista da banda Mão-de-Ferro. Mas ao contrário do psicólogo, ele nunca se angustiou com um sentimento de dualidade.

O conflito, por assim dizer, era de ordem mais prática. Casado, pai de dois filhos e com uma longa carreira no Tribunal de Justiça, o advogado percebeu que a agenda de seu antigo grupo, Os Catalépticos, não estava de acordo com sua realidade. "Viajávamos para o exterior todos os anos. Foram quatro turnês pela Europa e três pelos EUA", lembra.

Em uma das excursões americanas, os músicos visitaram a Disneylândia. Ao ligar para a mulher, durante o passeio, Gustavo soube que um dos meninos ardia em febre. Teve a certeza de que não deveria estar ali. Meses depois, na Espanha, outro alarme: sua casa havia sido inundada por conta de um temporal. A sensação de impotência foi ainda maior.

As responsabilidades profissionais e familiares se somaram ao desgaste natural de qualquer banda e Os Catalépticos encerraram sua trajetória. O advogado pensou em parar de tocar, mas não conseguiu. Montou o Mão-de-Ferro e hoje administra a carreira do grupo "muito de leve".

À beira dos 40 anos, ele admite que às vezes se arrepende de marcar um show. Preferia estar em casa, com a família, e dormir um pouco mais no dia seguinte. "Acho que a idade está pesando", conclui.

por OMAR GODOY
com fotos de LETÍCIA MOREIRA
novembro de 2008

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