Participantes se preparam para o início do ritual
O litro do chá custa R$ 80
Produzida a partir da fervura de duas plantas amazônicas - o cipó de jagube e as folhas da chacrona -, a bebida contém DMT, um elemento tóxico e psicoativo que pode causar alucinações. A Secretaria Nacional Anti-Drogas permite sua utilização, porém restrita a ambientes religiosos. Até aí, nenhum motivo para polêmica. Não fosse o fato de que os rituais ayahuasqueiros têm se proliferado pelos centros urbanos nos últimos anos.
Estima-se que 20 mil brasileiros são adeptos das três religiões sincréticas calcadas no uso da substância: Santo Daime, União do Vegetal (UDV) e Barquinha. Esse número, no entanto, pode dobrar quando entram na conta os centenas de grupos independentes espalhados pelo Brasil.
Só em Curitiba existem, pelo menos, dez deles. Do novato Centro Universalista Mãe Terra (CEUMT), com cerca de 15 frequentadores, ao consolidado Instituto Ayahuasca, cujo espaço costuma receber até 60 pessoas por sessão. Sem contar iniciativas isoladas, promovidas em círculos restritos de amigos.
O psicólogo Fernandes Ribeiro, 38, foi praticante de uma religião ayahuasqueira (que prefere não identificar) durante 18 anos. Insatisfeito com a expansão da instituição, desvinculou-se e, há poucos meses, fundou o CEUMT. "A coisa ficou tão grande que inviabilizou aquele contato original, essencial. Quanto mais gente envolvida, mais regras devem ser criadas para controlar o sistema", diz.
Ribeiro afirma que a popularização dos grandes cultos não é a única motivação para a formação dos sistemas independentes. De acordo com ele, há quem simplesmente não se identifique com a simbologia e os dogmas do Daime e seus congêneres - que podem contar com danças, hinos e o uso de vestimentas específicas, entre outras obrigatoriedades.
Enquanto os encontros do CEUMT ainda ocorrem na casa de Ribeiro, o Instituto Ayahuasca está em um estágio mais avançado. Criado há três anos, tem como sede o centro de terapias alternativas comandado por seu fundador, o acupunturista Fernando Cracco, 43. Trata-se de uma instituição legalizada e sem fins lucrativos, que inclusive mantém um cadastro formal de seus freqüentadores. "Está tudo aqui, à disposição da Polícia Federal", diz Cracco, mostrando uma pasta lotada de fichas.
O terapeuta conta que teve sua primeira experiência com ayahuasca há cinco anos, orientado por um "mestre" de origem peruana. "Cada grupo tem seu sistema. O nosso é baseado nas tradições maias e astecas", afirma. Ainda assim, Cracco acredita que os independentes formam, na verdade, um único e grande grupo, marcado pela ajuda mútua.
Essa cooperação, ele explica, inclui a circulação do chá. O problema não é exatamente o preço (em torno de R$ 80 o litro), e sim a dificuldade para consegui-lo. "Já sofremos muito por falta da ayahuasca, por isso temos o projeto de iniciar uma produção própria", revela o terapeuta, que muitas vezes fala da bebida como se ela tivesse vida.
Sobre a possibilidade de criar "franquias" do instituto, Cracco não titubeia: "Nem pensar! Isso vai contra a nossa proposta". Sua meta, no entanto, é organizar um espaço com capacidade para 400 pessoas. "Mas isso não fui eu que defini. Foi o ayahuasca que me passou", garante.
"CÉUS E INFERNOS"
Mais de 50 pessoas se reuniram, no último domingo, na sede do Instituto Ayahuasca, no bairro do São Francisco, em Curitiba. Gente, basicamente, de classe média e formação universitária, mas de todas as idades. Já passava das 14 horas quando Fernando Cracco, responsável pelo centro, iniciou uma preleção.
Descalços e sentados em cadeiras de plástico, os participantes ouvem compenetrados suas orientações. Praticamente um terço dos presentes estava ali pela primeira vez, trazidos por amigos, parentes ou parceiros. Como o administrador de empresas Tony Donaccorso, 43. Sua namorada, Abigail, bebeu o chá há pouco tempo e o convenceu a experimentar também. "Sou ateu, mas hoje acordei querendo fazer uma coisa diferente", diz Tony.
Mais escolada, a estudante de Educação Física L.N., 29, ajuda na organização do encontro. Cadastra os visitantes e recolhe R$ 10 de cada um - valor que custeia a bebida. Ela conta que começou a visitar o instituto no ano passado. "Já vinha buscando um lado espiritual e até cheguei a frequentar um centro espírita, mas não gostei".
Há quatros meses, L.N. perdeu a mãe. Hoje, acredita que a aproximação com a ayahuasca serviu como uma espécie de "preparação" para o momento doloroso. "O sofrimento é o mesmo. A diferença é que eu compreendo melhor meus sentimentos", reflete.
G.D. foi professor de L.N. na faculdade. Especialista em Fisiologia, era "totalmente ateu" até que, por insistência da aluna, conheceu o instituto, em junho. "Naquele mesmo dia, matei minha descrença", afirma.
Usando uma camiseta com motivos hindus, ele também exibe uma aliança de noivado. "Tinha uma espécie de bloqueio nos meus relacionamentos. Meus namoros não duravam mais de quatro meses", confessa, sem esconder a felicidade pela mudança.
Durante a rápida palestra, Cracco explica os detalhes do ritual e descreve os benefícios trazidos pelo chá. Entre eles a possibilidade de curar dependentes químicos e viciados em geral. "A ayahuasca é uma professora. Ela vem para ensinar e libertar a pessoa de tudo o que a escraviza" diz. E enfatiza: "Vocês vão ter um encontro com vocês mesmos, com seus céus e infernos".
Na seqüência, todos vão para o subsolo, equipado com colchonetes, cobertores e sacos plásticos (é comum vomitar ou ter diarréia durante o processo). Embalados por mantras e CDs com temas new age, os participantes enfim tomam o chá, em copinhos de café. Seguirão deitados até às 21 horas, sob a supervisão de Cracco e seus assistentes. Antes, todas as portas do instituto são trancadas - e a reportagem é obrigada a se retirar.
Na segunda-feira, pela manhã, Tony relata sua jornada. Por telefone, revela que teve a melhor experiência de sua vida. "Foi como ver um filme muito claro sobre o meu inconsciente. Percebi pontos positivos e negativos e entendi porque tenho determinados problemas".
Alguns momentos, ele admite, foram de tristeza e angústia, principalmente quando questões familiares vieram à tona. Mesmo assim, o administrador pretende voltar ao centro. "Isso não tem nada a ver com religião. Tem a ver com você mesmo, com uma descoberta pessoal. Com o ayahuasca, ninguém precisa de psicólogo".
A julgar pelos relatos, essa interiorização, somada à independência de dogmas e sacerdotes, é o que tem atraído cada vez mais interessados aos grupos ayahuasqueiros. Mais do que isso, como dizem os ayahuasqueiros, só tomando para saber.
OPINIÃO PROFISSIONAL
A professora Maria Virgínia Cremasco, do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), é orientadora de um grupo de alunos que pesquisa o uso da ayahuasca em centros urbanos. Ela explica porque a procura pela bebida tem aumentado.
"O ayahuasca induz a estados alterados que proporcionam vivências diferenciadas. A pessoa tem acesso rápido a um material psiquíco que faz muito sentido para ela, porque não veio de fora para dentro", diz a psicóloga, que revela já ter experimentado o chá.
De acordo com a professora, quem consome a bebida pode descobrir a razão de algum sofrimento ou angústia - e isso tem um resultado positivo. "Minha única crítica é quanto ao processo se limitar ao ritual. É preciso fazer um trabalho terapêutico em seguida, para encontrar instrumentos e ferramentas que possam dar significado ao que se descobriu. Do contrário, nada muda".
Presidente da Sociedade Paranaense de Psiquiatria, Marco Antonio Bessa compara o ayahuasca ao LSD e alerta para o risco do uso fora do contexto ritualístico. "É mais seguro quando há um controle social, no sentido de tomar o chá em datas e quantidades específicas".
Especialista em dependência química, ele não confirma a eficácia da bebida no tratamento de viciados, como prometem alguns grupos independentes. "Isso ainda é folclore. Na minha avaliação, só se substitui uma substância por outra".
E se o leitor da FOLHA souber que o filho freqüenta um grupo ayahuasqueiro? Deve se preocupar? "Esse pai deveria acompanhar o filho. É melhor que o jovem vá a um culto sério do que ao bar, para consumir fumo e álcool, muito mais perigosos", diz Maria Virgínia. Basso é mais cauteloso. "Cada família tem seus valores. Mas, como pai, eu me preocuparia", conclui.
por OMAR GODOY
com fotos de LETÍCIA MOREIRA (chá)
e MARCOS BORGES (outras)
novembro de 2008