PAIXÃO INEXPLICÁVEL

Baloeiros ignoram o perigo e a lei
em nome de uma cultura secular

Bancada (fábrica de balões): arte e engenharia

Balão pronto para subir: hobby clandestino

DVD da série CWB Balões, que já está na sexta edição


Em dezembro do ano passado, 200 homens invadiram uma casa no bairro do Boa Vista. Não tentaram roubar nada, tampouco acertar contas com alguém. Só queriam pegar um balão que caiu no telhado. Mas enquanto o dono tentava apagar o pequeno foco de incêndio causado pelo objeto, a turma gritava e fazia bagunça, como se estivesse num estádio de futebol.

Meses antes, a polícia prendeu 12 pessoas com a boca na botija em uma fábrica clandestina no Fanny. Foram apreendidos 10 balões, 54 fogos de artifício e 4 DVDs com ''aulas'' sobre o assunto. Os envolvidos pagaram fiança de R$ 600 e vão responder em liberdade a um processo por crime ambiental.

O noticiário policial revela apenas superficialmente o estágio atual de uma tribo que não para de crescer: a dos baloeiros. Antes uma manifestação folclórica, a soltura de balões juninos ganhou uma ''pegada'' de cultura urbana contemporânea e hoje se espalha pelas periferias brasileiras.

Rio de Janeiro, São Paulo e Curitiba são os principais pólos do gênero. Mas a ''arte proibida'', como se diz no meio, está em todos os lugares. Principalmente por conta da internet, essa grande agregadora de pessoas e tendências. São incontáveis sites, blogs, fóruns e comunidades sobre o tema - sem contar os cada vez mais numerosos vídeos no YouTube.

Editados como clipes de esportes radicais, os registros de soltura e resgate de balões são uma febre. E não apenas na web. Há um verdadeiro ''mercado negro'' de DVDs que buscam transmitir a emoção envolvida na atividade. Para se ter uma ideia, a série Capital Ecológica, produzida em Curitiba, já está na 13 edição. O mesmo grupo lançou, recentemente, um vídeo dedicado exclusivamente à caçada de balões, Profissão Resgate.

Esse comércio informal ainda inclui camisetas e bijuterias temáticas. Na loja virtual Papel e Cola, é possível até pagar com cartão de crédito. Quem também lucra com a tribo são as empresas de papel de seda e fogos de artífico, estes últimos muito usados como efeito em balões noturnos.

Misto de obra de arte e produto de engenharia, o balão junino também se sofisticou. Os materiais têm mais qualidade, o que garante maior resistência e tempo de voo. Quanto aos temas, não há limites para a imaginação dos projetistas. Os desenhos vão de celebridades a imagens sacras, passando por grafismos, personagens de quadrinhos e retratos de familiares.

O tamanho dos novos balões impressiona. Se os de 10 metros, mais comuns, já enchem os olhos de quem vê, o que dizer de criações que chegam aos 50? Reza a lenda que o maior balão do Brasil, solto em São Paulo, tinha 72 metros. Não custou menos de R$ 30 mil.

TRADIÇÃO ARRAIGADA

Mas o que leva alguém a gastar tempo e dinheiro com um hobby que pode dar cadeia? Para responder, é preciso voltar ao ano de 1709, quando padres jesuítas soltaram os primeiros balões no Brasil. É o que conta o livro Balões: Paixão Inexplicável (1999), de Odair Bueno e Ivo Patrocínio, uma espécie de bíblia para os entusiastas. Lançado pouco depois da criminalização do balão junino, logo saiu de circulação. Hoje, pode custar R$ 300 nos sites de leilão.

A capa e o prefácio levam a assinatura dos respeitados Ziraldo e Carlos Heitor Cony, respectivamente. ''Nada mais belo, nada mais emocionante do que fazer e soltar um balão'', escreve Cony. Ao longo do livro, os autores enumeram exemplos de políticos, empresários e religiosos que se envolveram com a atividade. Muitos deles chegaram a financiar o trabalho de baloeiros.

É justamente aí que mora a polêmica. Como mudar, da noite para o dia, uma cultura arraigada há séculos na sociedade? Lá se foram 10 anos desde a criminalização, mas os fãs dos balões continuam ignorando o perigo e a própria lei. Pois o artigo 42 da legislação ambiental é claro: fabricar, vender, transportar ou soltar balões que possam provocar incêndios é crime.

Presidida até pouco tempo por um militar reformado, a Sociedade Amigos do Balão (SAB), com sede no Rio de Janeiro, busca regulamentar a soltura. Sua proposta é cadastrar os grupos e vistoriar os balões, atestando sua segurança. Em outubro do ano passado, a entidade promoveu a Semana de Mobilização Pró-Regulamentação do Balão Junino, no intuito de sensibilizar autoridades e parlamentares. Uma causa talvez impossível, visto que a opinião pública e população em geral já se deram conta dos riscos embutidos na prática.

Segundo o delegado Olavo Romanus, da Delegacia de Proteção ao Meio Ambiente, cerca de 90% das apreensões são fruto de denúncias feitas por vizinhos de baloeiros - uma prova da conscientização. Por outro lado, ele acredita que o fortalecimento da tribo é reflexo do crescimento do Brasil como um todo. ''Com a evolução da economia e o aumento do poder aquisitivo, todas as atividades se desenvolveram no país. Há também o fator internet, que colocou essas pessoas em contato''.

O tenente Anor Santos Júnior, da Força Verde do Batalhão de Polícia Ambiental, faz um balanço das ações da divisão em 2008. Foram 7 flagrantes e 169 autuações em Curitiba e região -além de 203 balões e inúmeros materiais de produção apreendidos. ''Nosso trabalho é fazer um acompanhamento dessa movimentação, inclusive na internet. Esperamos que, com o tempo, as pessoas entendam o risco que envolve essa prática'', diz o militar, para quem o problema está mesmo ''na questão cultural''.

CONFISSÕES DE BALOEIRO

"Só quem é louco pira junto no balão", diz a letra de um rap que circula na internet. Para os aficionados, é realmente difícil explicar o fascínio pela prática, muitas vezes transmitida de pai para filho.

"Gostar de mulher é fácil. Mas vai tentar entender porque alguém gosta de papel e cola. É um vício", brinca o comerciante e produtor de eventos Faxada, de 22 anos. Como tantos outros, ele se "converteu" ainda na infância, ao ver o pai soltar balões em festas de família. Hoje, mantém um blog sobre o assunto e produz a série de DVDs CWB Balões, que já está na sexta edição.

Faxada também faz parte da equipe Garagem, uma das muitas espalhadas por Curitiba e Região Metropolitana. Ele começa uma lista e não consegue parar: Elite, Oxigênio, Labareda, TVO, Arte Probida, Turma da Lua, Domínio da Arte, Vagalume, Arte Eterna, Zepelin Sul... Há até um grupo dedicado exclusivamente aos resgates, o Carrapeta.

Sair à caça de balões é um expediente tão comum quanto a soltura. O objeto recuperado pode voltar ao céu ou ser reciclado, mas também vale como um troféu. Por isso, não são raras as ocorrências de brigas e acidentes de trânsito durante as maratonas. "Você fica cego. Não quer saber se tem um rio, uma cerca ou um muro na sua frente", diz Faxada, ele mesmo um adepto dos resgates.

As equipes têm, em média, 10 integrantes. Cada um é responsável por uma parte do processo - do design à soltura. Algumas não contam com projetistas em suas fileiras, e por isso contratam serviços "terceirizados". Nesse caso, chegam a desembolsar R$ 300 por um único trabalho.

Membro de um dos grupos mais tradicionais da cidade, a Turma da Lua, Gordo, 34, está no meio há 20 anos. Também cresceu assistindo ao pai soltar balões com os amigos, porém só passou a construí-los depois que ele morreu.

O "estalo" para começar veio de uma reportagem sobre o tema exibida no antigo programa de tevê Comando da Madrugada, do jornalista Goulart de Andrade. "Vi aquelas obras de arte indo para o céu e fiquei louco. Hoje, percebo que fazer balão é uma forma de estar sempre perto do meu pai", reflete.

Gordo é formado em Administração de Empresas e atua na área. Mas já vendeu papel de seda para se sustentar. "Construí uma casa só com o dinheiro do papel", afirma. Ele conta que empresários do setor, e também do ramo de fogos do artifício, costumam patrocinar concursos de balões, os chamados Bocas de Ouro.

A rivalidade entre as equipes, Gordo garante, para por aí. "Na verdade existe uma união. Muitas vezes, as turmas fazem vaquinhas para pagar os estragos causados na casa de um vizinho".

E por falar em estragos, os baloeiros acreditam que apenas 2% do que é solto cai em chamas. "Hoje em dia, com a evolução dos balões, eles começam a apagar meia hora antes de chegar ao chão", afirma Gordo.

Para Faxada, quem prejudica a imagem do movimento são os marinheiros de primeira viagem, garotos imprudentes que aprendem pela internet e mandam trabalhos mal acabados para o céu. São esses, segundo ele, que causam incêndios. "Leva dois anos só para você começar a entender como a coisa funciona", diz.

Seja como for, o risco existe, não dá para negar. Ainda assim, os aficionados seguem desafiando a lei. Ou melhor: ignorando.

"Nós simplesmente não reconhecemos uma lei que vai contra a cultura e o folclore de um povo", justifica Gordo, favorável à regulamentação. "Por que não normatizar? Você não imagina a emoção que é ver centenas de crianças olhando para o alto, encantadas com um balão", arremata

por OMAR GODOY
com fotos de GORDO E FAXADA
janeiro de 2009

ESCONDIDO EM CURITIBA

Naporano: ‘‘necessidade física’’ de pesquisar


Fernando Naporano não gosta de ser fotografado. Só aceita posar depois de alguma insistência. Também descarta aparecer com sua coleção de milhares de LPs, CDs, K-7s e DVDs. ‘‘Isso é um clichê, deixo para o Fábio Massari’’, diz, citando o ex-VJ da MTV, notório por sua discoteca reforçada.

Ele segue dirigindo a rápida sessão. Faz questão de sair nas fotos acompanhado da cadela Melody. E também de fumar. ‘‘Sou politicamente incorreto. Faço propaganda mesmo. Adoro cigarro!’’.

Naporano foi um dos maiores críticos musicais do país a partir dos anos 80. Seus textos para o jornal Folha de São Paulo e a revista Bizz combinavam personalidade forte e muito conhecimento de causa. Em paralelo, liderava o Maria Angélica Não Mora Mais Aqui, hoje lembrado como uma cult band que inaugurou o expediente de cantar em inglês no underground brasileiro.

Quando saiu do país, no início da década seguinte, virou correspondente de veículos como O Estado de São Paulo, Correio Braziliense e Rede Globo, além de colaborar com publicações estrangeiras. Ainda trabalhou para a gravadora Continental, negociando os direitos de discos brasileiros para os mercados europeu e asiático.

Foram 13 anos em Londres e dois nos EUA. Naporano só voltou ao Brasil em 2004, para ficar mais perto da filha, que mora em São Paulo com a mãe. Até tentou viver novamente na capital paulista, mas não se adaptou. ‘‘Escreva o que eu vou dizer, por favor: São Paulo é uma cidade aflitiva, suja e cara’’, afirma, na primeira das várias ênfases da conversa.

Em seguida, mudou-se para Florianópolis (SC) e, enfim, Curitiba, onde encontrou o equilíbrio entre qualidade de vida e proximidade da filha. Considera-se aposentado, apesar de fazer eventuais trabalhos de tradução. ‘‘Tenho nojo de me envolver com as coisas vigentes. As diretrizes da imprensa cultural atual são estupidamente medíocres’’, justifica.

Lendo assim, pode parecer que Naporano é um sujeito amargo. Mas suas tiradas, mesmo as mais agressivas, contém um humor ácido, impagável. Exemplos não faltam.

‘‘Prefiro dar vassouradas na minha mãe do que assistir a esses festivais corporativos’’, diz, sobre os shows internacionais patrocinados por grandes empresas. ‘‘Não vou jantar com um gordo desgraçado só para convecê-lo a lançar um livro sobre o rock psicodélico do Texas’’, dispara, quando o assunto são os projetos que gostaria de desenvolver - e sua inaptidão para lidar com o ‘‘mundo real’’, como ele mesmo admite.

Morando há dois anos com a incrivelmente jovem Bianca, o jornalista passa o dia lendo nos parques da cidade. Pesquisa poesia, cinema e praticamente todos os gêneros de música. Tem vários livros prontos, mas quer mesmo é relançar a obra do Maria Angélica, ainda inédita no formato digital.

‘‘Procuro um mecenas para produzir uma caixa com quatro CDs e um livreto contando a história da banda. Tem de ser uma coisa luxuosa, em respeito ao público. Do contrário, não faço’’, afirma, para depois cogitar uma série de shows acústicos caso o projeto saia do papel.

Outra de suas paixões é o futebol. Torcedor incurável do São Paulo e do Everton (Inglaterra), assiste a jogos de todos os cantos do mundo. ‘‘Luto contra o tempo para dar conta de ver, ler e ouvir tudo o que me interessa. É meio neurótico, uma necessidade física’’, confessa, cercado por estantes lotadas.

Aliás, a casa espaçosa, no bairro do Seminário, é um verdadeiro museu. Só de LPs e CDs, são cerca de 25 mil. Todos devidamente organizados - em ordem alfabética e divididos em categorias extremamente pessoais, como ‘‘60’s Westcoast Sounds’’, ‘‘70’s Europe’’ e ‘‘Italian Stuff’’.

Antes de encerrar o papo, insisto em saber sua idade, que ele não revela de jeito nenhum (há quem diga que Naporano tem 46). ‘‘Escreva aí: idade inconfessa. Porque não acredito em drama de geração, nesse negócio de que ‘no meu tempo era melhor’’’, diz. ‘‘No Brasil, há essa mania de dizer que o jovem é burro, não pensa. A Bianca só tem 20 anos e é um gênio’’, completa.

por OMAR GODOY
com foto de MARCOS BORGES
fevereiro de 2009

PISTA DUPLA

Motoclubistas novatos e "de raiz"
falam sobre o crescimento da tribo

Salsicha (frente), do Fator Mutante: conforto é o de menos

Almir, dos Paladinos, formado por policiais civis e militares

Durão, diretor local dos Abutres: "fio desencapado"


O Brasil caminha para ser o quarto maior produtor de motocicletas do mundo, perdendo apenas para China, Japão e Índia. Cerca de 2 milhões de unidades foram vendidas apenas neste ano, entre modelos populares e de luxo. Com isso, a frota nacional deve bater na casa dos 9 milhões de veículos de duas rodas - praticamente o dobro do número registrado em 2007.

Dentro de poucos anos, serão vendidas mais motos do que carros no País. Esse crescimento se deve, basicamente, a três fatores: aumento do poder aquisitivo, preços mais acessíveis e facilidade de financiamento. Mas, por trás desse boom, há também uma mudança de comportamento.

Um dos símbolos da contracultura, a motocicleta deixou de ser sinônimo de rebeldia. Tornou-se uma alternativa de transporte e o ganha-pão de muita gente. De quebra, virou opção de lazer nos fins de semana. Nunca se viu tantos comboios de motociclistas passeando pelas estradas.

Os motoclubes são uma febre em todo o Brasil. Só em Curitiba existem mais de 100, entre filiais de grandes grupos nacionais (as chamadas facções) e pequenas turmas de amigos. Cada um com seu perfil, estatuto e, é claro, colete de couro.

Durante muito tempo, os clubes rivalizavam e chegavam às vias de fato. Até que, em 1987, o líder do grupo Balaios foi vítima de um atentado a bomba no Rio de Janeiro. Houve um processo de pacificação e a convivência hoje é relativamente tranqüila.

A bronca, agora, tem viés conceitual. Os membros dos clubes ditos ''de raiz'' acreditam que os mais novos não vão durar muito tempo. Para eles, tudo não passa de um modismo seguido por gente que não compreende o verdadeiro estilo de vida motoclubista.

''A moto você compra. O espírito, não'', diz o professor aposentado Alexandre Durão, 58 anos, diretor da facção curitibana dos Abutres, um dos maiores motoclubes do País. ''Não acho que os outros estejam errados. Mas tem muitos por aí que apenas colocam um colete e se travestem de motociclistas na sexta-feira'', emenda.

De acordo com Durão, um abutre se sente parte de uma sociedade alternativa. Mesmo quando não está com o grupo. ''A gente vive esse espírito 24 horas. É uma questão de postura'', afirma.

E que postura é essa, que une desde desempregados a juízes de direito? ''Isso a gente não divulga, mas posso garantir que é tudo relacionado com o bem-viver'', desconversa.

As brigas, então, acabaram? ''Você já viu um fio desencapado? Ele está parado ali. Se você colocar a mão, vai levar um choque'', ironiza.

Integrante da facção local do motoclube Fator Mutante, Cláudio Adriano, 28, acredita que é tudo uma questão de ''pegada''. Para ele, o verdadeiro motoclubista não se importa com conforto. O contrário dos ''zé roelas'' que fundam clubes ''coxinhas'' só para ir ao litoral e voltar.

Salsicha, como é mais conhecido, trabalha como motorista e sonha em ter uma Harley Davidson. Juntou-se ao Fator Mutante justamente porque o grupo não faz distinção entre tipos de motocicletas. Ele conta que chegou a viajar para São Paulo na garupa de um amigo, pois não tinha dinheiro para ir com a própria moto. ''Somos todos irmãos. Se um não tiver grana, os outros inteiram a pinga dele'', diz.

Casado duas vezes e pai de um menino de 8 anos, Salsicha rompeu com a segunda mulher por causa do motoclube. Chegou a ficar um tempo afastado do grupo a pedido da parceira, mas a falta dos amigos acabou pesando. ''Eu sentia o mesmo amor por ela e pelo clube. Só que, de um lado, tinha uma pessoa só. Do outro, tinham várias'', justifica.

CADA UM NA SUA

Na outra pista, os motoclubistas, digamos, moderados não escondem que só estão nessa para espairecer. "É mais lazer e entretenimento do que estilo de vida", diz a administradora de empresas Danielle Carstens, 30. Ela e o marido, o engenheiro Luciano, estão entre os fundadores do motoclube Águias Indomáveis, criado em 2003.

Danielle admite que há um certo preconceito de seu grupo com os "cegezeiros" (donos de motos CG, mais baratas e menos potentes). Nos encontros de motociclistas, os dois extremos não se misturam muito. "Eles devem nos ver como um bando de almofadinhas que só querem passear no fim de semana. E isso não é mentira", brinca.

Ela inclui os Águias Indomáveis na categoria dos grupos "família", cada vez mais comuns nas estradas do País. O que não chega a ser uma surpresa, visto que até motoclubes gospel já viajam por aí. Mas uma turma só de policiais seria algo impensável há 20 anos.

É justamente essa a marca registrada dos Paladinos, formado em sua maioria por delegados, investigadores, coronéis, sargentos, etc. Muitos dos membros nem tinham motos antes de conhecer o grupo, como explica o policial civil Almir Alberti, 50, da Delegacia de Furtos e Roubos. "Tem um coronel amigo nosso, por exemplo, que não se deu bem com a moto e hoje está feliz com seu triciclo".

Nas viagens, ele conta, as mulheres e filhos seguem o grupo em vans alugadas. E se o destino é um encontro entre motoclubes, é quase certo que os Paladinos serão vistos com uma certa desconfiança. "Algumas pessoas sentem receio, sim. Os Abutres, por exemplo, sempre ficam meio arredios", diz.

Alberti ainda revela que não facilita a vida de eventuais arruaceiros só porque são da mesma tribo. "Independentemente de ser de motoclube, a gente tem de enquadrar quem estiver armado ou portando droga. Todos já estão cientes disso".

Para o policial, o surgimento de grupos independentes é uma reação à rigidez dos mais tradicionais. Em muitos deles, os novatos (também chamados de prósperos) são tratados como calouros e devem se submeter a uma série de provações. "Já vi homens de barba branca varrendo o chão, limpando motos e comprando cerveja enquanto os outros ficam de perna para o ar. Isso é uma humilhação", diz.

Durão, dos Abutres, rebate. "Em qualquer sociedade existe hierarquia. Você não faz gentilezas para as pessoas mais velhas?". Salsicha pensa da mesma forma. "A gente coloca o próspero à prova mesmo, para saber se ele está disposto a ajudar". A intenção, eles garantem, é que todos sirvam ao grupo.

Nesse debate, apenas uma coisa é certa: vai faltar estrada para tanta gente

por OMAR GODOY
com fotos de DIEGO SINGH
dezembro de 2008

JACARÉ, O RETORNO

Ciclista performático está de volta às ruas da cidade

Ele voltou. Depois de uma longa temporada fora de Curitiba, Jacaré novamente pedala pela cidade com sua bicicleta, digamos, "performática". Foram quatro anos de viagens Brasil afora, divulgando lojas, circos e parques de diversões por meio do poderoso sistema de som da bike.

A magrela, enfeitada com uma "carenagem" de garrafas plásticas recicladas, está ainda mais envenenada e já pesa 120 quilos (pensando bem, não tem nada de magrela). Em plena Rua XV, não há quem resista a uma espiada mais de perto. Saudado por turistas, lojistas e até policiais, Jacaré é só alegria.

"Estou comemorando a vitória do Obama. Temos a mesma idade, 47 anos. Vou colocar uma música em homenagem a ele", diz, para em seguida tocar uma gravação de "New York, New York" com Liza Minnelli.

Convidado por uma empresa de eventos a retornar a Curitiba, Jacaré agora quer reconquistar sua clientela. Cobra R$ 20 por hora de divulgação, com direito a aplicação de banners do anunciante na bike. Para complementar a renda, vende colares, brincos e pulseiras que ele mesmo produz com fios de aço.

Foi com o artesanatato que o artista popular começou a ficar conhecido na cidade. O apelido, por sinal, vem do tempo em que tinha barracas no Largo da Ordem e na praia de Ipanema (a paranaense, claro). "Comprei dois jacarezinhos de brinquedo para enfeitar a barraca. Os bichos faziam tanto sucesso que foram roubados. Mas acabei ficando com esse nome", lembra.

Batizado como José Leopoldo de Oliveira Silva, Jacaré nasceu na cidade alagoana de Viçosa, cujos filhos mais ilustres são os políticos Teotônio Vilela (pai e filho) e Aldo Rebelo. Saiu de lá aos 17 anos para conhecer São Paulo, onde morava seu irmão. Resolveu ficar e logo foi admitido como office boy de um banco.

Em seguida, trabalhou como mensageiro e auxiliar de compras na Rede Globo. Estabilizou-se na função de operador de empilhadeira no aeroporto de Guarulhos. "Acho que minha história com a bicicleta vem desses dois empregos. Na Globo, peguei gosto pela comunicação. No aeroporto, aprendi um pouco de aerodinâmica", afirma.

O namoro com Curitiba começou em 2000, quando esteve por aqui visitando um sobrinho. Encantado com a limpeza e os parques da cidade, mudou-se de mala e cuia após conseguir uma vaga como operador de máquinas em uma indústria de bebidas. Mais tarde, insatisfeito com o salário, desistiu de ter carteira assinada para investir no artesanato. A bike-show surgiu pouco depois, bem como seu primeiro cliente de peso - o senador Álvaro Dias, para quem trabalhou durante uma campanha eleitoral.

Solteiro e sem filhos, o artista atualmente mora em uma pensão no bairro do Rebouças. Tem várias idéias a serem desenvolvidas, entre elas um projeto ambicioso: divulgar Curitiba ao redor do mundo, caso a cidade seja uma das sedes da Copa de 2014. Para quem criou o próprio meio de vida, um sonho a mais não faz mal, certo?

por OMAR GODOY
com foto de LETÍCIA MOREIRA
novembro de 2008

PROFISSÃO: PALHAÇO

Nova geração de artistas investe
na pesquisa de técnicas e linguagens

Hora da transformação: em busca da essência


Na carteira profissional de Rafael Barreiros, 26 anos, consta o registro de "Artista Malabarista Palhaço". Sim, a atividade circense é reconhecida pelo Ministério do Trabalho, inclusive com o detalhamento das habilidades do indivíduo - acrobacia, malabarismo, mágica, etc.

Rafael domina o equilibrismo, mas é, antes de tudo, um palhaço. Sua mulher, Milene, 27, também. Com outros quatro amigos, eles inauguraram, em dezembro do ano passado, o primeiro espaço cultural da cidade dedicado exclusivamente a esse tipo de expressão. Com sede no centro da cidade, a Cia dos Palhaços oferece oficinas e cursos na área, além de servir como um centro de pesquisa. Em breve, vai abrigar um palco para as apresentações da trupe.

Nenhum dos sócios vem de família circense. São todos, de alguma maneira, crias do Circo Novo, um movimento cultural que ganhou força no País a partir do fim dos anos 80 ao promover o diálogo da arte do circo com outras manifestações (teatro, dança, música, performance). A exemplo de grupos como Parlapatões e Intrépida Trupe, a Cia dos Palhaços investe no estudo da linguagem - nesse caso, da cômica.

"As pessoas acham que para ser palhaço é só colocar peruca e nariz vermelho", diz Felipe Ternes, 26, que trocou o agasalho de professor de Educação Física pelo figurino desproporcional dos bufões. "Muita gente pergunta: ‘Mas tem mesmo que estudar para ser palhaço?"’, acrescenta Eliezer Brook, 23, que começou a carreira como voluntário em hospitais, animando crianças doentes.

Para eles, há uma imagem distorcida da figura do palhaço na sociedade. A começar pela ideia de que se trata de uma atração apenas para os pequenos. O mais recente espetáculo da companhia, A Regra É Cômica, desmistifica esse conceito. É um show de humor, na linha da improvisação, voltado para adultos - e que acontece somente em sessões nortunas.

"Não gosto que me vejam como aquele palhaço que invade, assusta, desrespeita", resume Felipe, que no palco é chamado de Sarrafo. Aliás, como não poderia deixar de ser, todos na turma têm seu alterego cômico. Rafael e Milene são Alípio e Sombrinha. Eliezer escolheu um nome "de verdade", Wilson (e, talvez por isso, seja o mais engraçado). Completam o time Silvestre Phillippi, 28, o Macaxeira, e Nathália Luiz, 24, a Tinoca.

Mas o caminho para se tornar um palhaço não se encerra no aprendizado técnico, que envolve noções de comédia física, figurino, maquiagem e música. O grande desafio do artista é encontrar sua essência, seu lado rídiculo, e colocar isso para fora. "O ator veste um personagem quando entra em cena. Já o palhaço, ao contrário, expõe aquilo que ele mesmo esconde, sua verdadeira personalidade", explica Rafael.

Sendo assim, a famosa "síndrome do palhaço triste" (aquele que sorri quando, na verdade, quer chorar) não existe. "Se você está chateado, ou com raiva, você assume isso em cena", diz Felipe. Rafael emenda: "O importante é se divertir com a própria tristeza e não se levar muito a sério".

Ou seja: não há exatamente um trabalho de construção de personagem. Definindo vulgarmente, o palhaço é o próprio artista em versão, digamos, "amplificada". Para Nathália, noiva de Felipe, é uma questão de honestidade total. "No fim das contas, você passa por um processo de autoconhecimento muito grande", garante.

BUFÕES CORPORATIVOS

Autoconhecimento, autoajuda, autogestão... O mundo corporativo simplesmente adora qualquer conceito que tenha esse prefixo. Não à toa, a agenda da Cia dos Palhaços é tomada por eventos fechados, realizados em empresas. "Às vezes, há dois grupos que competem entre si dentro da empresa. A gente chega e já sente aquele clima tenso. Quando termina a oficina, está tudo mundo mais relaxado", conta Felipe.

"Não quero dizer que uma oficina de palhaço seja uma forma de autoajuda. Mas tem um lado terapêutico forte", diz Rafael. De acordo com ele, o foco do grupo está nos espetáculos, porém a subsistência vem dos eventos corporativos.

Essa nova onda de "inclusão" dos palhaços diminui o preconceito contra os artistas. Mas eles ainda passam por certos constragimentos quando têm de se identificar. Silvestre, por exemplo, lembra da ocasião em que foi testemunha de uma amiga num tribunal. "Antes de começar o depoimento, o juiz perguntou a minha profissão. Quando disse que era palhaço, ele fez uma cara de espanto, como se eu estivesse debochando".

Nessas horas, há quem prefira evitar esse tipo de situação. "Como não quero me incomodar, digo apenas que sou artista", diz Rafael, que tem dois filhos com Milene. "Senão as pessoas acham que a gente é palhaço 24 horas por dia. Como se eu dissesse para as crianças: ‘Se você não dormirem, vão levar uma tortada na cara!", diverte-se.

por OMAR GODOY
com fotos de LETÍCIA MOREIRA
janeiro de 2009

O JAPÃO É AQUI

Lina, do Centro Cultura Tomodachi: filosofia através do idioma

Há pouco tempo, o governo do Japão anunciou um projeto para ''regulamentar'' a culinária típica do país. A ideia era resgatar a essência de certos pratos, desvirtuados por adaptações ocidentais (quem curte o brasileiríssimo sushi com queijo e goiabada sabe do que estamos falando). Mas ninguém por lá deu muita bola, e a proposta foi engavetada.

Corta para o Brasil. Em Curitiba, no palco de um concorrido evento para fãs da cultura pop nipônica, uma banda de rock toca apenas temas de desenhos animados made in Japan. À frente dos músicos, uma garota negra, de no máximo 20 anos, canta sem um pingo de sotaque. O público delira.

Volta para o Japão. O grande ídolo do momento na música tradicional do país é negro. E americano de Pittsburgh. Quem se importa? Jero, neto de japoneses, arrasta multidões de todas as idades aos shows.

Esses e outros cruzamentos culturais já não são mais previsões para o futuro. Acontecem aqui e agora, e só tendem a ganhar mais visibilidade nos próximos anos. ''Isso é, ao mesmo tempo, assustador e espetacular'', diz a advogada e professora de japonês Lina Saheki, 32, antenada com a movimentação. Sem muito alarde, como preza a tradição oriental, ela criou, com outros quatro amigos, um espaço catalizador dessas tendências.

Inaugurado em agosto de 2008, o Centro Cultural Tomodachi, no Largo da Ordem, oferece aulas de língua japonesa, mangá, música, origami, filosofia, história do oriente, etc. ''A mentalidade ocidental coloca o Japão como algo muito distante. Nossa proposta para o centro era criar um lugar menos étnico e mais acessível'', explica.

Lina hoje se divide entre a gestão do espaço e as aulas de japonês. Mas revela que jamais se imaginou como professora da língua. Filha de japoneses, cresceu em Vitória (ES), onde o pai fazia questão de dar lições diárias do idioma para a família. Formou-se em Direito e começou a lecionar numa faculdade, até que uma experiência fora do país mudou os rumos de sua trajetória.

Em troca de uma bolsa de estudos para cursar um doutorado na Espanha, Lina passou a ensinar japonês para funcionários da Unesco. Esse reencontro com a língua, dessa vez na condição de instrutora, foi uma revelação. ''Cada palavra, cada ideograma, tem um sentido muito prório, profundo. Descobri que poderia ensinar filosofia através do idioma'', conta.

Em Curitiba desde 2006, quando se mudou para ficar mais perto do noivo, ela começou a perceber o grande interesse dos jovens pela cultura nipônica (sempre a partir dos mangás, animes e afins). E apostou que haveria uma demanda por aprofundamento. Daí para a fundação do Tomodachi (que significa ''amigos'' em português) foi só uma questão de tempo. ''Aqui, não ensinamos apenas a língua. Ensinamos valores. Sou muito idealista'', conclui.

Centro Cultural Tomodachi

por OMAR GODOY
com foto de DIEGO SINGH
janeiro de 2009

MERCADO DO RISO

Meio teatro, meio balada,
o show de humor em bares
movimenta a vida noturna

Zeni, adepto da escola do stand-up comedy

Para Fábios Lins, humor de improvisação é a nova onda

Silveste como o motorista que adora dirigir, mas odeia passageiros


Última terça-feira, por volta das 21 horas. Cerca de 100 pessoas esperam pelo show do comediante Fábio Silvestre e seus convidados no bar Era Só o que Faltava, em Curitiba. São, basicamente, casais jovens de classe média alta, que podem gastar R$ 100 em uma noite de meio de semana. No canto esquerdo do lugar, um grupo grande comemora o aniversário de uma moça.

Shows cômicos em bares viraram uma opção de entretenimento em capitais como o Rio de Janeiro, São Paulo e Curitiba. Mais despojado do que o teatro, menos agitado do que uma balada, esse tipo de programa atrai um público em franco crescimento. É diversão leve e despretensiosa - se alguém busca profundidade, entrou no lugar errado.

Silvestre, ator experiente e com vários prêmios no currículo, segue um estilo de humor mais tradicional, baseado em personagens populares. Como o motorista que adora dirigir, mas odeia passageiros. Ou o malandro carioca recém-chegado a Curitiba. E ainda o ex-ator pornô que reconhece antigos colegas na platéia.

A programação da noite, batizada de Café Comédia, também destaca Marco Zeni, outro egresso do teatro que faz sucesso no circuito do humor. Sua escola é a do stand-up comedy americano, mais conhecida no Brasil a partir do seriado Seinfeld. A fórmula é (aparentemente) simples. Nada de figurinos, maquiagem ou qualquer outro recurso cênico. Apenas o comediante, em pé, fazendo observações sobre o cotidiano.

Pouco mais de uma hora depois, o grupo volta ao palco para as despedidas. Silvestre anuncia que, na próxima terça, haverá um convidado especial: Felipe Andreoli, um dos repórteres do humorístico CQC, da Bandeirantes. O platéia se anima. Na semana passada, outro comediante do programa, Rafael Cortez, veio à cidade para duas apresentações. Acabou fazendo sete números.

Uma das raras surpresas da tevê nos últimos anos, o CQC soube captar o novo boom do humor que acontece no Brasil. Formou seu elenco com alguns dos nomes mais badalados do meio, como Oscar Filho, Danilo Gentili e Rafinha Bastos, hoje recebidos como rockstars por onde passam.

Atrações como Pânico (Rede TV) e Zorra Total (Globo) também abrigam figuras consagradas nos palcos. E aí se incluem, ainda, atores vindos de espetáculos teatrais mais afinados com o gosto do público jovem, a exemplo do pioneiro paulista Terça Insana. Em Curitiba, essa vertente é representada pelo grupo Antropofocus, responsável por hits locais como Pequenas Caquinhas e Amor e Sacanagens Urbanas.

Identificação é a palavra-chave para se entender esse cenário. Cansada das velhas anedotas de português e dos esquetes paródicos no estilo Casseta & Planeta, a nova audiência quer ouvir piadas que tratem de seu cotidiano. Na noite de terça, por exemplo, temas atuais como Orkut, Big Brother e Obamania foram os mais festejados.

Mas a origem dessa movimentação também está em sua própria logística. Se uma peça de teatro convencional precisa de pelo menos dez pessoas para sair do papel, um show de humor é o comediante e nada mais. Tudo muito barato, descomplicado e direto. O resultado é uma maior proximidade do artista com a platéia.

Proximidade, aliás, que é a tônica dos tempos atuais. O espectador deixou de ter uma atitude passiva diante do que assiste. Quer interagir, participar e, se possível, produzir o conteúdo. Vide os vídeos pessoais exibidos no Fantástico, as votações dos reality shows, as perguntas dos internautas lidas nos jogos de futebol, etc. Nesse sentido, a nova cara do humor é só mais um traço de um fenônemo muito maior.

SER OU NÃO SER (STAND-UP)

Se a questão é proximidade, o público local não tem do que reclamar. Nos shows da nova geração de humoristas, não faltam piadas sobre Curitiba. A simples menção à sacola de determinado supermercado ou a um restaurante de Santa Felicidade faz as pessoas rirem.

Comediantes como Fábio Silvestre e o já veterano Diogo Portugal vão mais fundo e contróem personagens extremamente curitibanos. "Pode parecer que não, mas tem muita gente engraçada nesta cidade", ironiza Silvestre, criador de tipos facilmente reconhecíveis no cotidiano.

Essa distinção entre intérprete de personagem e stand-up comedian é motivo de uma certa polêmica no meio. Há quem se saia bem nas duas funções (como Portugal) e aqueles totalmente voltados para o formato mais puro. Marco Zeni é um deles.

"Sou mesmo um xiita com as regras do stand-up", admite o ator, "dono" de uma noite de humor semanal no bar Santa Marta, a Santa Comédia. De acordo com ele, o sucesso da fórmula tem atraído oportunistas que simplesmente ignoram o conjunto de técnicas que envolve o gênero. "Não vou dizer o nome, mas teve um cara do CQC que passou por aqui e não conseguiu fazer a coisa direito", conta.

Zeni está falando do já citado Rafael Cortez, um ator de formação que, aproveitando a fama do programa, resolveu se arriscar na "comédia em pé". Sobre a tentiva, Portugal não faz rodeios. "Só três do elenco do CQC sabem fazer stand-up: Danilo Gentili, Oscar Filho e Rafinha Bastos".

Desbravador do humor em Curitiba, Portugal criou um circuito praticamente sozinho. Mesmo Silvestre e Zeni vieram um pouco depois. Com a experiência de quem já se apresentou para apenas dez pessoas e hoje leva mais de 100 à sua noite fixa no John Bull, ele comenta a inflação desse mercado. "Esses dias eu cheguei em casa e minha empregada estava testando um texto de stand-up", brinca.

Apesar da invasão dos caroneiros, Portugal acredita que a nova febre do humor também é boa para os pioneiros. "Ajuda a diminuir a discriminação que eu sofri no meio artístico, por não ter vindo do teatro", diz.

O fato é que a atividade dá dinheiro. "Já ganhei mais em um mês no bar do que em dez anos no teatro", afirma Zeni. "Uni o útil ao agradável. O prazer de estar no palco com o prazer de ganhar dinheiro", arremata.

O cachê para uma única performance pode variar de R$ 2 a R$ 20 mil, caso dos integrantes do CQC. Mas o bar é apenas uma vitrine para os comediantes, que faturam mesmo com os shows fechados - aniversários, festas de família, eventos corporativos. Nos últimos meses do ano, 80% da agenda dos artistas é tomada pelas apresentações em empresas.

Talvez por isso, não há muita rivalidade entre as noites de humor. Pelo contrário. Silvestre e Zeni, por exemplo, dividem custos para trazer atrações de fora, que acabam se apresentando nas duas casas.

"Acho que essa amizade é uma atitude anticuritibana, levando-se em conta a média da nossa classe artística. No meio da música não existe cooperação, e até hoje nenhuma banda daqui aconteceu nacionalmente", compara Silvestre, acostumado a se apresentar no Rio e em São Paulo.

O PRÓXIMO BOOM

Já é possível dizer que há uma segunda geração do humor curitibano. Gente que viu de perto o surgimento da cena e entrou no jogo sem ter de enfrentar o percalços dos desabravadores. "O Fábio Lins é um dos que chegou com uma visão mais profissional da coisa", afirma o xará Fábio Silvestre.

Lins, de 22 anos, passou de ator mirim a comediante com a ajuda de Silvestre. Há pouco mais de um ano, estreou no Café Comédia e não parou mais. Começou fazendo personagens e migrou para o stand-up comedy. Hoje comanda, com Marco Zeni, a noite Santa Comédia.

Ele explica que um show de humor não se sustenta apenas com piadas engraçadas. "Da disposição das cadeiras ao atendimento dos garçons, tudo conta. É importante que o dono da casa também invista na produção, dividindo, por exemplo, os custos quando se traz uma atração de fora".

A divulgação é outra chave para o sucesso, mas não da maneira convencial. Em vez de mandar releases para a imprensa, os produtores exploram a internet - mandando e-mails, entrando em comunidades do Orkut ou disponibilizando vídeos de apresentações no YouTube.

Ou seja: mais uma prova de que a marca do movimento é mesmo o contato direto com o público. "No fim das contas, o que importa é o boca-a-boca", diz Lins.

Sobre o boom do humor, ele faz uma ressalva. "Existe uma febre, claro. Mas há muitos flashs que apenas piscam, trabalhos que não se mantêm. Noites de comédia realmente estruturadas, como a nossa, devem ter apenas umas cinco no Brasil inteiro".

Além de atuar no Santa Comédia, Lins dirige o grupo Nu Improviso. Como diz o nome, trata-se de uma trupe especializada no humor de improvisação, desenvolvido a partir de jogos com a platéia - que, de certa forma, influi na condução do show.

Trata-se de mais uma escola americana, que vem ganhando adeptos Brasil afora (em Curitiba, a Cia dos Palhaços também está em cartaz com um espetáculo do gênero). "Esse vai ser o próximo boom", acredita o diretor.

PRIMEIRAS PIADAS

Hélio Barbosa, Richard Rebelo, Vitor Hugo, Alisson Diniz, Léo Lins, Miau Carraro... O cenário do humor curitibano tem outras figuras que ainda não foram citadas aqui, inclusive femininas. Como Fabiula Nascimento e Katiuscia Canoro, hoje famosa por conta da personagem Lady Kate, do programa Zorra Total.

Aspirantes também não faltam. Eles geralmente tentam a sorte fazendo pequenas aparições em noites consagradas, como a do Café Comédia, que abre espaço para um show de calouros. Foi assim que Bia Franzolin, 33, deu seu primeiro passo no circuito.

Já foram três apresentações desde outubro do ano passado, quando Bia estreou a personagem Baranga da Night, uma feiosa que só conquista homens bêbados e lamenta o advento da Lei Seca. Formada em artes cênicas, ela trabalha como designer em uma agência de publicidade "por motivos financeiros", mas está focada novamente na interpretação.

Envolveu-se com o meio ao trabalhar na produção do Risorama, evento de humor paralelo ao Festival de Curitiba. Em seguida, encomendou alguns textos para um amigo redator, seu colega na agência. "Já temos 15 personagens prontos, só preciso de mais oportunidades para me desenvolver", diz.

Para Bia, cujo currículo inclui cursos de atuação no exterior, a nova onda do humor aproxima o público do ator. "O teatro no Brasil é uma coisa muito cult, a pessoa precisa de uma biblioteca para entender o texto. O show em bar é diferente. Tem uma linguagem simples, fala de situações que todo mundo passa".

Quanto ao fato de haver poucas mulheres no circuito, ela não se intimida. "Me sinto muito à vontade no meio dos humoristas. Além do mais, a dificuldade de ser mulher dentro de um universo masculino é a mesma que existe na publicidade e em outros meios", garante a iniciante.

por OMAR GODOY
com fotos de divulgação
fevereiro de 2009

GUITARRAS E RESPONSABILIDADES

Ser adulto e ter uma banda de rock
deixou de ser tabu no underground

Alexandra é bancária, mãe de uma menina e guitarrista do Subburbia

O geólogo André, do ruído/mm: amigos "estabilizados" estão voltando a tocar

O médico Erasmo, do Tristessa: neurocirurgia e música barulhenta


Após os seis anos da faculdade, e outros cinco de residência, o médico Erasmo Barros, 31 anos, finalmente pode se considerar um neurocirurgião. "É a formação mais longa da Medicina", explica o doutor, que também termina em breve um mestrado em cirurgia.

Abrir e operar o crânio dos outros, convenhamos, é uma tremenda responsabilidade. São cerca de cem horas de trabalho semanais, ele conta, marcadas por muita tensão e estresse. Não é de se admirar que muitos médicos simplesmente não conseguem se desconectar quando saem do centro cirúrgico. "Se tirar a Medicina, muito deles não têm mais nada", diz.

Com Erasmo é diferente. Ao menos uma vez por semana, o neurocirurgião se encontra com três amigos (dois advogados e um arquiteto) para tocar música alta, pesada e barulhenta. Eles formam o Tristessa, banda que transita pelo underground roqueiro da cidade desde 2003.

A exemplo do quarteto, centenas de outro grupos do cenário independente, ou alternativo, são formados por artistas que se dividem entre a música e a carreira profissional. E não está se falando, aqui, de atividades ligadas à comunicação. Afinal, jornalistas, publicitários e designers sempre estiveram envolvidos no meio artístico.

Tampouco se trata de um mero hobby. Essas bandas compõem seu próprio material, produzem shows e festivais, lançam discos e excursionam pelo Brasil (algumas chegam ao exterior). "Hobby é para quem coleciona selo, alimenta peixe. Para mim, o rock e a medicina se complementam", afirma Erasmo.

Alexandra Sakaguchi, 27, concorda. "Não considero um hobby. A gente leva a banda muito a sério", diz a integrante do Subburbia. Bancária há nove anos, ela também estuda Direito. "É um curso que facilita o acesso a concursos públicos", explica a guitarrista, que busca uma condição estável.

Ela revela que nem sempre foi fácil conciliar as duas coisas. Sobretudo pela pressão da família, japonesa e de costumes tradicionais. "Toco em bandas desde os 16 anos, mas meus pais nunca aprovaram. Quando minha filha nasceu, ficou ainda pior", conta a mãe de Clarice, hoje com 7 anos.

Como se vê, a administração do tempo não é o maior problema para os músicos. E o fato de ser adulto e tocar rock and roll também começa a ser encarado com naturalidade pela sociedade. "Todo adulto tem uma válvula de escape, e o mercado de trabalho não vê mais isso como um ponto negativo. Muito pelo contrário", afirma Bruno Zagonel, 29, baterista do Criaturas e engenheiro de uma companhia multinacional.

A verdade é que ninguém mais precisa largar o rock só porque se casou, teve filhos e conseguiu um emprego respeitável. E mais: há quem tenha se estabilizado e retornado à vida nos palcos alternativos. "Conheço gente que voltou a ter banda depois que os filhos cresceram um pouco", conta o geólogo André Ramiro, 28, pai de um menino e integrante dos grupos ruído/mm (com minúsculas mesmo) e Índios Eletrônicos.

Para Erasmo, é tudo uma questão de postura. "Você tem que escolher. Ou assume suas responsabilidades, ou vira um Peter Pan que não aceita envelhecer e permanece com aquela ilusão do sucesso. Se você passou dos 25 anos e ainda não vendeu pelo menos umas 20 mil cópias, não vai ser um rockstar", brinca.

Depois de cortar um dobrado ao conviver com colegas de grupo bem mais jovens (e sem maiores preocupações na vida), o médico promoveu uma troca geral de integrantes. Hoje, afirma que o Tristessa finalmente chegou à formação ideal. "Todos são casados, trabalham e querem estar cedo em casa para descansar. É a banda que eu sempre quis".

HORA DE OPTAR

Oneide Diedrich, 33, foi vocalista do Pelebrói Não Sei?, um dos grupos mais populares do underground local nesta década. Mas travava uma espécie de "guerra interior", como se tivesse de optar por uma das duas atividades. Chegou à conclusão de que não havia escolha.

"Quem é compositor entende isso melhor. Você não decide se vai compor uma música. É ela que decide aparecer", explica o psicólogo, que tem formação em Psicanálise e é sócio de uma clínica.

No melhor momento do Pelebrói, quando o grupo ganhou reconhecimento fora da cidade, Oneide se viu "obrigado a fazer sucesso". Como era de se esperar, o processo culminou no fim da banda - e ele percebeu que era hora de investir na clínica.

A inspiração, é claro, não cessou. Surgiu então um novo projeto, Diedrich e os Marlenes, cujos músicos compartilham do mesmo dia-a-dia "adulto". " Um dos caras tem um filho adolescente que já toca em uma banda", conta o artista-analista, que ainda chama a atenção para a longevidade de ídolos como Bob Dylan e os Rolling Stones. "Eles são a prova de que o rock também envelheceu", afirma.

Como Oneide, o advogado Gustavo Rodrigues, 39, acredita que a atração pelos porões do rock é irreversível. "Deve ser um cromossomo defeituoso", ironiza o baixista e vocalista da banda Mão-de-Ferro. Mas ao contrário do psicólogo, ele nunca se angustiou com um sentimento de dualidade.

O conflito, por assim dizer, era de ordem mais prática. Casado, pai de dois filhos e com uma longa carreira no Tribunal de Justiça, o advogado percebeu que a agenda de seu antigo grupo, Os Catalépticos, não estava de acordo com sua realidade. "Viajávamos para o exterior todos os anos. Foram quatro turnês pela Europa e três pelos EUA", lembra.

Em uma das excursões americanas, os músicos visitaram a Disneylândia. Ao ligar para a mulher, durante o passeio, Gustavo soube que um dos meninos ardia em febre. Teve a certeza de que não deveria estar ali. Meses depois, na Espanha, outro alarme: sua casa havia sido inundada por conta de um temporal. A sensação de impotência foi ainda maior.

As responsabilidades profissionais e familiares se somaram ao desgaste natural de qualquer banda e Os Catalépticos encerraram sua trajetória. O advogado pensou em parar de tocar, mas não conseguiu. Montou o Mão-de-Ferro e hoje administra a carreira do grupo "muito de leve".

À beira dos 40 anos, ele admite que às vezes se arrepende de marcar um show. Preferia estar em casa, com a família, e dormir um pouco mais no dia seguinte. "Acho que a idade está pesando", conclui.

por OMAR GODOY
com fotos de LETÍCIA MOREIRA
novembro de 2008

COSTUREIRA PERFORMÁTICA

Lisa Simpson já costurou, "ao vivo", em bazares e shows de rock

''Toda pessoa pode fazer sua própria roupa'', garante Lisa Simpson, 25 anos. Especialista em reciclar e customizar roupas, ela se define como uma ''agente de costura'' e, desde o ano passado, oferece seus serviços em um ateliê próprio.

O trabalho, ela explica, é totalmente artesanal e independente das tendências vigentes. O que a aproxima mais das artes visuais do que do circuito da moda propriamente dito. ''Costurar, para mim, também tem um lado performático'', diz Lisa, que já costurou, ''ao vivo'', em bazares e shows de bandas de rock.

Para ela, é interessante que as clientes vejam as roupas sendo transformadas e deem palpites durante o processo. ''O que me move é a intenção da pessoa. Sou só um veículo'', afirma.

Nascida em São Paulo, Lisa se mudou com a família para o Canadá em meados dos anos 90. E o que era para ser apenas uma temporada acabou virando uma década na cidade de Vancouver. Lá, ela frequentou a escola e se encantou pelas aulas de corte e costura, disciplina obrigatória no currículo básico do país - inclusive para os meninos. Por ter um tipo físico diferente das canadenses (mais altas e esguias), a futura ''agente'' começou a praticar adaptando as próprias peças que comprava.

De volta ao Brasil, e dessa vez a Curitiba, onde sua família tem negócios, Lisa logo chamou a atenção das novas amigas. Não apenas por chegar ''totalmente gringa'', como ela mesma admite, em uma cidade que mal conhecia (o que lhe rendeu o apelido inspirado no seriado de tevê). Graças ao seu visual diferente, começou a receber encomendas para customizar roupas e não parou mais. Hoje, concilia a rotina no ateliê, batizado de Agente (Costura), com as aulas da faculdade de Artes Visuais.

Mas, afinal, como funciona o business de Lisa? Segundo ela, todo mundo tem peças antigas, ou pouco usadas, das quais não consegue se desfazer, seja por razões afetivas ou porque a estampa e o tecido são interessantes. Em vez de renovar o guarda-roupa em lojas, suas clientes a procuram para repaginar o que já possuem em casa. A partir de R$ 15, é possível ter uma calça transformada em bermuda, por exemplo.

''Há um lado meio social nesse trabalho, no sentido de reciclar e não acumular'', afirma Lisa, que prepara para breve um desfile na rua, em frente ao ateliê.

Agente (Costura)

por OMAR GODOY
com foto de LETÍCIA MOREIRA
janeiro de 2009

OS TRIBALISTAS

Comunidade alternativa
nos arredores de Curitiba
é marcada pela autogestão
e o desapego aos bens materiais

Cerca de 50 pessoas, entre adultos e crianças, vivem na comunidade

Benyah: em busca de "relações verdadeiras"

Shoresh e família: "Essa vida é para encher a Terra inteira"


Nosso guia nesta reportagem é um gaúcho de 48 anos que largou tudo - inclusive o próprio nome - para ter uma ''vida preservada''. Rebatizado como Benyah, ele mora com outras 50 pessoas numa comunidade alternativa em Campo Largo, a 15 quilômetros de Curitiba. Separado do resto da sociedade, o grupo tem um único objetivo: viver, na prática, o amor pregado por Jesus Cristo.

Engenheiro Civil, Benyah deixou a cidade de Osório (RS) em busca de ''relações verdadeiras''. Visitou comunidades autogeridas em vários lugares do Brasil e da América Latina, mas não encontrou o que procurava. Mesmo as tribos indígenas, ele conta, estavam contaminadas pela perversidade.

Sua crença na humanidade já estava perdida quando, em 2002, durante o Fórum Social Mundial de Porto Alegre, ele conheceu dois ''andadores'' (divulgadores) das Doze Tribos de Israel. Trata-se de um movimento internacional, dividido em confederações, que já conta com mais de 2.500 adeptos em nove países. Organizados em um regime tribal, os membros seguem uma espécie de cristianismo primitivo. Valorizam a família e não se prendem aos bens materiais.

No Brasil, há três comunidades ligadas às Doze Tribos, todas instaladas no Paraná. Juntos, os grupos de Londrina, Campo Largo e Mauá da Serra reúnem cerca de 180 pessoas. Segundo Benyah, o movimento brasileiro começou no Nordeste, no fim dos anos 80, e se deslocou para o Sul na década seguinte, por conta do clima mais propício à agricultura.

Convidado pelos andadores, Benyah passou duas semanas em Londrina e se impressionou com o que viu. ''Descobri que a única regra aqui é o amor. O resto é direcionado pela necessidade das pessoas'', explica. Pouco depois, ele ganhou um novo nome (em hebraico, como é de praxe entre as tribos) e se mudou de vez para a comunidade de Curitiba, posteriormente transferida para Campo Largo. E lá se vão quase sete anos.

Separado, o engenheiro é pais de três filhos, que moram com a mãe no Rio Grande do Sul e o visitam nas férias. ''Tenho esperanças de que, um dia, eles venham morar aqui comigo'', confessa Benyah, que atualmente mora numa barraca. ''Mora'' é modo de dizer, pois os membros do grupo praticamente só dormem em seus espaços reservados. Passam o dia trabalhando e fazem as refeições todos juntos, em uma casa central no sítio de 10 alqueires.

O terreno é de propriedade da comunidade, que também possui uma fábrica de chás orgânicos, um carro e um ônibus. Além do chá, velas artesanais, sandálias de couro e pães caseiros garantem o sustento dos moradores. Sem contar os recursos automaticamente doados pelos ''irmãos'' quando se mudam para lá. ''Quem tem uma casa, dá uma casa. Mas há quem chegue aqui com dívidas'', esclarece Benyah.

Há cinco casas espalhadas pelo sítio, uma delas em construção. Casados e solteiros moram em lugares separados, sendo que as famílias têm quartos exclusivos. As crianças, cerca de 20, são educadas ali mesmo, de acordo com a filosofia do movimento. Cada adulto trabalha com o que mais se afina, e algumas mulheres se dedicam a lecionar. Uma das professoras é a londrinense Dodavah, 34, que há dez anos largou a faculdade de Marketing para se juntar ao grupo.

Solteira, e sem um parceiro na comunidade, ela afirma não sentir falta de ter um relacionamento afetivo. Buscar alguém fora dali também está fora de cogitação. ''Simplesmente não faz sentido'', diz. Benyah arremata: ''Isso não costuma acontecer. E se acontece, a pessoa vai embora''.

O caso mais comum é o de Shoresh, 29, que conheceu Zait, 22, quando já morava no sítio. Os dois se casaram e hoje têm uma filha de 2 anos, Chedavah. Ex-mergulhador profissional, ele não vê os pais há dois anos. ''Minha mãe, que é psicóloga, foi totalmente contra a minha mudança. Depois de um ano, ela se arrependeu e até já veio me visitar uma vez'', conta.

Shoresh faz questão de dizer que ele e seus ''irmãos'' estão separados, e não isolados da sociedade. Explica que, todas as sextas-feiras, no fim da tarde, a comunidade é aberta para convidados. Aos sábados e domingos, é a vez do grupo visitar Curitiba, para vender seus produtos e divulgar a filosofia das Doze Tribos.

Neste momento, aliás, há um grupo em Florianópolis preparando o que pode ser uma nova sede do movimento. ''A idéia é criar milhares de pequenos núcleos como o nosso. Essa vida é para encher a Terra inteira. É o plano de Deus'', afirma Shoresh, sem conter a empolgação.

APENAS O NECESSÁRIO

De acordo com Benyah, são poucas as regras que regem a vida na comunidade. A principal delas, ao que parece, é abandonar a individualidade para viver em função do grupo. Tudo é dividido, ele explica, ''mas não de uma forma comunista, rigorosamente igual''.

Cada irmão elabora uma lista do que precisa, e a distribuição de roupas e outros objetos pessoais é feita de acordo com as necessidades - que não são muitas, já que todos se vestem da maneira mais simples possível.

No entanto, existe uma certa rotina a ser seguida. Todos acordam às 6 da manhã e uma hora depois já estão reunidos na casa central. Ali eles rezam, cantam e dançam antes da primeira refeição. Também praticam exercícios, como caminhada e alongamento. O trabalho para valer começa às 8 horas. Há atividades para todos: limpar, cozinhar, lecionar, plantar, construir, costurar, etc.

O almoço, com base em alimentos naturais e orgânicos, inclui mais uma sessão de oração, dança e cantoria. O mesmo acontece no fim da tarde, quando termina a jornada. E assim vai, até às 22 horas, quando o grupo se recolhe para dormir. Televisão, nem pensar. ''A gente até tem uma. Mas só usa de vez em quando, para ver algum vídeo gravado aqui mesmo'', conta Shoresh, que teve sua festa de casamento registrada.

Nem tudo é harmonia na comunidade, claro. Quando surge algum impasse, é acionado um conselho composto por sete homens ''responsáveis'', como diz Benyah. As mulheres só podem participar de um outro conselho, formado por casais.

Normalmente, quem cria problemas são aqueles que contribuem menos para a coletividade. Se a situação se agrava, a pessoa é convidada a se retirar. ''Não deixamos os conflitos sem resolução'', garante Benyah. ''O que nos mantém unidos é justamente a paz que temos uns com os outros'', completa Shoresh.

UMA VIDA SIMPLES

Não foi sem uma dose de insistência que a reportagem da FOLHA conseguiu entrar na comunidade das Doze Tribos em Campo Largo. Como tudo é decidido coletivamente, a visita levou cerca de um mês para ser autorizada.

O sítio, de fácil acesso, fica a menos de 20 minutos de Curitiba. Chegando lá, fomos recebidos por Benyah e encaminhados para a casa central. Ali, uma senhora nos serviu o chá que eles mesmo produzem e um bolo de gosto forte.

Não fosse pelo entra-e-sai da criançada e a música étnica que tocava no aparelho de som, o silêncio reinaria no lugar. Nem a construção de uma nova casa, a poucos metros, parecia atrapalhar aquela calmaria.

Terminado o papo com Benyah, Shoresh e Dodavah (que passavam pela sala e aceitaram contar suas histórias), fomos levados para um giro pela propriedade. Tudo muito simples e rústico, a começar pelo quartinho que serve de sala de aula para os pequenos.

Também conhecemos a oficina, onde um grupo trabalhava com velas aromáticas e sandálias de couro. A fábrica de chás ficou para outro dia, pois está instalada em Rondinha, a poucos quilômetros dali.

Visitamos, ainda, uma morada no fim do terreno, próxima de um barranco. Era, até o dia anterior, o canto de Shoresh, que agora dorme com a família em um quarto da casa central. A estrutura? Cama de casal, berço e estante. O banheiro fica do lado de fora.

Antes de voltarmos para a redação, o grupo posou para uma última foto e nos convidou para almoçar. O cheiro da comida estava ótimo, mas tivemos de recusar por conta de nossos horários ''apertados''. Quando já estávamos no carro, a mesma senhora que nos serviu o lanche veio correndo entregar um pão caseiro de presente.

Na estrada, foi impossível não refletir sobre a rotina louca da cidade, a eterna pressa do jornalismo e os nossos filhos - que, ao contrário das crianças da comunidade, não estavam com os pais.

ORIGENS E CONTROVÉRSIAS

O movimento das Doze Tribos foi fundado nos Estados Unidos, no início da década de 70, por Elbert Spriggs e sua mulher, Marsha. O nome é inspirado nas unidades patriarcais do Antigo Povo de Israel, que, segundo a tradição judaico-cristã, originaram-se dos descendentes de Abrãao.

As primeiras reuniões aconteciam na casa dos Spriggs, em Chattanooga, no estado do Tennesse. Em 1972, o casal criou um ministério para jovens, a Brigada da Luz. Com o tempo, os membros perceberam que poderiam viver comunitariamente, dividindo tarefas e compartilhando os resultados. Boa parte de seu sustento vinha de um café, o Yellow Deli, o primeiro de uma série de lojas espalhadas pelos EUA.

Além dos cafés, as comunidades ligadas às Doze Tribos possuem negócios variados, como fábricas de produtos naturais (chás, velas, cosméticos, etc.), gráficas e indústrias de móveis. Estas últimas foram motivo de polêmica em 2001, quando se descobriu que crianças de um grupo de Nova York estavam envolvidas na produção.

Três anos depois, na Alemanha, sete integrantes de uma comunidade foram presos por educar seus filhos em casa - o que é proibido no país. Na esteira das denúncias, surgiram também acusações de racismo e anti-semitismo contra o movimento. Para se defender, os membros alegam que há muitos negros no grupo e destacam sua origem judaica.

Doze Tribos no Brasil

por OMAR GODOY
com fotos de MARCOS BORGES

CARTOLA ELETRÔNICO

Eduardo já organizou mais de cem campeonatos de futebol virtual

A grande final do Campeonato Paranaense de Futebol Digital aconteceu no dia 11 de novembro, numa loja de games do centro da cidade. Cerca de 200 jogadores, além de vários curiosos, assistiram à partida entre um agente penitenciário de 29 anos e um estudante de 16. O mais velho levou a melhor, e voltou para casa com um videogame de última geração como prêmio.

Quem disputou a primeira edição do torneio, em 2005, certamente não imaginava que a brincadeira ganharia proporções tão grandes. Realizado no apartamento do organizador, o então office-boy Eduardo Gomes, o campeonato contou com apenas seis jogadores. De lá para cá, ele já promoveu mais de cem competições - uma delas, patrocinada por uma rádio, foi disputada dentro de um cinema.

Eduardo, hoje com 30 anos, fundou a Federação Paranaense de Futebol Digital antes mesmo de a entidade existir de verdade. Depois de registrar o estatuto em cartório, ele investiu suas economias na divulgação do primeiro torneio. A repercussão na imprensa esportiva foi tão positiva que a segunda edição, realizada no mês seguinte, atraiu 44 jogadores. "Tive de emprestar televisões da família", lembra.

O terceiro campeonato, com mais de 60 inscritos, aconteceu numa loja alugada. Em paralelo, outras federações surgiam pelo Brasil, sempre tendo a paranaense como referência. E assim foi, até que Eduardo montou seu próprio negócio de games. Mas não sem uma dose de sacrifício.

Quinze dias depois da inauguração, ladrões levaram todo o seu estoque - causando um prejuízo de R$ 30 mil (dinheiro emprestado de um primo). De volta à estaca zero, o "cartola eletrônico" se reergueu fazendo o que sabe: organizando competições.

Instalado em um novo local, e com 4 mil panfletos em mãos, ele percorreu os estádios da cidade divulgando o paranaense "virtual" de 2008. E, como se sabe, o torneio foi um sucesso, com mais de 200 inscritos. Tanto que Eduardo planeja aumentar o espaço da loja, incrementando a estrutura com um telão.

Também apaixonado por futebol "real", o cartola é daqueles que interrompe o que estiver fazendo para ver uma partida pela televisão. "Minha namorada fica louca quando vejo um Milan e Juventus, por exemplo", conta. Mas, jogar mesmo, não é muito com ele. "O sedentarismo é tanto que eu só joguei de goleiro. Para que ficar correndo atrás da bola se ela pode vir até mim?", debocha.

Federação de Futebol Digital

por OMAR GODOY
com foto de MARCOS BORGES
dezembro de 2008

A VINGANÇA DAS NERDS

Aficionadas invadem o mundo masculino
dos games, quadrinhos, RPGs e afins

Mabel dá uma força para os rapazes do site Nerd Curitibano

Ana é fã da série Mochileiro das Galáxias

A cosplayer Luana: nerd, mas com uma queda pela aventura


Impossível não reconhecer o toque do celular da designer Carol Santos, 36 anos. É a Marcha Imperial, o famoso tema de entrada do vilão Darth Vader na série Guerra das Estrelas. Mais do que uma piada, o ringtone indica que Carol faz parte de uma tribo em franco crescimento: a das mulheres nerds.

Conhecidas como she-nerds, elas estão cada vez mais presentes nos eventos de quadrinhos, ficção científica, RPG, etc. Também dão suas opiniões em sites, blogs, twitters e comunidades virtuais. Algo impensável há dez, quinze anos, quando os encontros de aficionados praticamente só atraiam marmanjos - e, no máximo, uma ou outra namorada mais devotada.

"A própria palavra nerd agora tem outra conotação. Deixou de se referir ao estereótipo, bem americano, do cara de óculos viciado em computador", diz Carol. Ela tem razão.

A "nerdice", como se diz, hoje está mais associada à atitude de se aprofundar em algum assunto da cultura pop. "Minha vida acabou indo para um lado mais intelectual do que físico. Adoro pesquisar as coisas que me interessam. E eu simplesmente não consigo ter outro tipo de interesse que não seja cinema, música, videogame, etc", admite a designer.

Influenciada por um irmão 14 anos mais velho, Carol se apaixonou pelos Beatles ainda na infância. Implorava para entrar no quarto dele, repleto de discos, revistas e memorabilia em geral. Pouco tempo depois, quando sua irmã se casou com um japonês, veio outra revelação: o mundo dos jogos eletrônicos.

"Meu cunhado tem oito sobrinhos que naquela época já conheciam vários games. Era engraçado. Ficávamos eu e todos aqueles japinhas jogando o dia inteiro", lembra.

Se Carol é daquela época em que os nerds mal sabiam como era o cheiro de uma garota, as representantes da nova geração praticamente já se criam no meio. Graças à internet, elas perderam a vergonha de si mesmas. "Como as meninas são mais tímidas, acabam conhecendo as pessoas na web", explica a fotógrafa e desenhista industrial Ana Nemes, 20, fã da série de livros de humor e ficção científica Mochileiro das Galáxias.

Para a figurinista Luanna Castanho, 22, a internet é a válvula de escape das adolescentes superprotegidas pela família. "Os pais não deixam elas sair de casa, porque as ruas estão muito perigosas. Então ficam no Orkut o dia inteiro e ganham tudo o que querem", afirma a jogadora de RPG e campeã de concursos de cosplay (fantasias inspiradas em personagens de quadrinhos, filmes e animações).

Quando ficam um pouco mais velhas, e livres, as she-nerds não se privam de sair à noite, beber e se divertir. Porém de forma moderada, em lugares reservados e sem se arrastar madrugada adentro. "Prefiro um bar que toque música legal e a gente possa conversar", diz a designer Mabel Linberger, 23, colaboradora do site Nerd Curitibano.

Por sinal, a participação de várias designers, desenhistas e afins nesta matéria não é mera coincidência. "É que na faculdade a gente recebe muita referência de cultura pop, trash, cinema", justifica a designer Denise Chybior, 28, que também se aventura pelo terreno das artes visuais. É dela uma das esculturas da edição curitibana da Cow Parade, projeto de intervenção urbana que espalha vacas de fibra de vidro pelas cidades.

De volta ao tema "vida noturna", as she-nerds se dizem bem mais sociáveis do que seus pares masculinos. E ainda garantem ter um leque de gostos mais amplo. "Talvez seja uma característica feminina, de não ficar presa numa coisa só", opina Ana Nemes. "Não me considero totalmente nerd. É um lado da minha personalidade", garante Denise.

Ana, por exemplo, não dispensa um visual "mulherzinha", com direito a salto alto, vestido e unhas pintadas. Já Carol faz uma linha mais punk, que ela define como "nerdcore". A palavra, aliás, foi recentemente tatuada em seu braço - e se juntou aos outros oito desenhos que a designer tem no corpo.

O caso mais extremo é o de Luanna, conhecida como "Lua" nas rodas de cosplayers. Além de figurinista de um grupo de teatro, ela dá aulas de kung-fu e dança do ventre. De quebra, viaja por aí com a turma de um motoclube. "Sou eclética. Adoro uma aventura e também os meus amigos de cosplay. Eles não têm vergonha de brincar, de ser meio infantis", afirma.

Ok, não existe mulher 100% nerd. Mas elas não negam a "raça" quando a tentação fala mais alto. Como Carol, que dias desses largou os amigos numa mesa de bar para assistir em casa ao penúltimo episódio de Dexter, seu seriado favorito do momento. "Ninguém entendeu direito. E o pior é que o programa iria passar de novo depois!", diverte-se.

TODOS IGUAIS

Quando o assunto é relacionamento amoroso, as she-nerds são enfáticas: é muito mais fácil namorar alguém com os mesmos interesses. "Imagina conviver com uma pessoa que não sabem quem é quem em Star Wars", diz Ana, atualmente sozinha.

A afinidade, no entanto, não é tudo. Em algumas situações, pode até atrapalhar. "Além de se isolar mais, muitos caras nerds são arrogantes, acham que sabem tudo. Isso acaba irritando", adverte Denise.

Menos radicais do que os he-nerds, elas não vêem problema em se envolver com pessoas de fora do círculo de amizades. É o caso de Luanna. "Para falar a verdade, meu namorado acha o pessoal que anda comigo meio estranho", confessa.

No fim das contas, todas concordam em um ponto: fã ou não de Guerra nas Estrelas, o instinto masculino sempre prevalece. "Vendo de fora, você até acha que os nerds são mais delicados, sensíveis. Quando conhece melhor, percebe que não tem diferença nenhuma", afirma Mabel, que namorou um "cara bem nerd" durante 5 anos. Homem, pelo visto, é mesmo tudo igual.

por OMAR GODOY
com fotos de LETÍCIA MOREIRA (Mabel, Ana)
e MAURO FRASSON (Luana)
dezembro de 2008

CAÇADORA DE TENDÊNCIAS

Patrícia Papp: um novo jeito de trabalhar com comunicação

Luiza vai nascer na semana que vem. É o segundo bebê da publicitária Patrícia Papp, 33 anos, mãe de um menino de 5, o Pedro. Para cuidar da pequena, ela terá de abrir mão, pelo menos por um tempo, de uma das partes mais "chatas" de seu trabalho: viajar, a cada 40 dias, para fora do país. Só neste ano de gravidez, Patrícia esteve nos Estados Unidos, Japão, Malásia e Argentina.

Sócia e fundadora da empresa Pulp Idéias e Conteúdo, a publicitária é uma caçadora de tendências profissional. Ou cool hunter, como se diz no meio. Seu dia-a-dia consiste basicamente em investigar novidades e apresentá-las ao mercado - por meio de boletins informativos e de forma mais direta, no sistema de consultoria.

Patrícia explica sua atuação. "Digamos que um shopping center pretende fazer uma grande transformação. Nós analisamos a situação e sugerimos ações inovadoras para que o cliente comunique essa mudança. Pintar tudo de determinada cor, por exemplo, como vimos em um outro shopping de Hong Kong". E por aí vai, sempre com atenção nos detalhes.

Assumidamente inquieta e agitada, a publicitária passou por quase todas as grandes agências da cidade (como estagiária ou diretora de arte). Até perceber, há três anos, que a comunicação entrou em uma nova fase. E não só porque a quantidade de informação e de veículos para transmiti-la aumentou. A maneira como as pessoas recebem e interagem com os conteúdos também mudou.

"A publicidade não é mais estática. O consumidor agora já pode participar de uma campanha, mandando sua história pela internet, ajudando a escrever o roteiro do comercial ou mesmo desenhando um modelo de tênis", afirma. Desse desejo de "fazer parte da mudança" surgiu a Pulp, criada com dois amigos jornalistas e "novidadeiros" de carteirinha.

Atenta, 24 horas, a tudo o que é diferente, Patrícia ainda leciona e se envolve nas atividades do Clube de Criação do Paraná (entidade que discute a comunicação regional e preserva sua memória). De quebra, está sempre à disposição para debates, palestras, seminários e entrevistas. "Aprendo muito com os estudantes, pois eles têm uma maneira toda própria de se relacionar com as novas ferramentas de comunicação. Mas a verdade é que eu não consigo dizer não", admite.

por OMAR GODOY
com foto de LETÍCIA MOREIRA
novembro de 2008

CÉU PROFUNDO

Grupos de observação se unem para
celebrar o Ano Internacional da Astronomia

Integrantes do grupo Nevoeiro, especializado em "saídas de campo"

Professores do Planetário: sessões noturnas no IYA20009


O funcionário público Leandro Trevisan e o analista de sistemas Reginaldo Nazário se conheceram pela internet, em um site de leilões. Pesquisavam acessórios para telescópios e, conversa vem, conversa vai, descobriram que trabalhavam perto um do outro. Apaixonados por Astronomia, resolveram ir além do blablablá dos fóruns de discussão e fundaram seu próprio grupo de observação.

Há dois anos na ativa, o Nevoeiro, como foi batizado, hoje conta com 23 membros. Especializada em "saídas de campo", a turma se reúne em chácaras e sítios da Região Metropolitana de Curitiba para observar planetas, cometas, chuvas de meteoros, supernovas e afins. Uma atividade que exige disposição e, acima de tudo, condições climáticas adequadas.

Como o Nevoeiro, existem mais de cem outros grupos de observação espalhados pelo país. E não se trata apenas de um passatempo. A Astronomia é uma das raras ciências em que os estudiosos amadores exercem um papel ativo, principalmente na descoberta e acompanhamento de fenômenos. Afinal, os astrônomos profissionais costumam se concentrar em suas pesquisas específicas, enquanto os independentes estão "soltos" por aí atrás de objetos celestes.

Para incentivar ainda mais os amadores e atrair novos interessados, a Unesco (organismo da ONU voltado para a educação e a cultura) definiu 2009 como o Ano Internacional da Astronomia - IYA2009. As celebrações marcam os 400 anos da primeira utilização do telescópio, por Galileu Galilei, e vão contar com eventos em 135 países. Em Curitiba, a abertura oficial da programação acontece amanhã, no Colégio Estadual do Paraná, onde está montado o Planetário da cidade.

Segundo Bertholdo Schneider Jr., um dos representantes do IYA2009 por aqui, a principal meta nacional até o fim do ano é fazer com que um milhão de brasileiros observem o céu por meio de telescópios. O projeto ainda tem outros objetivos, entre eles "fornecer uma imagem moderna da ciência e do cientista", como consta no documento publicado pela Unesco.

Professor de Eletrônica e Biomédica da Universidade Tecnológica Federal do Paraná e membro do Clube de Astronomia da instituição (o Cautec), Bertholdo explica melhor esse último propósito. "Não somos loucos", brinca, sobre a fama de lunáticos dos observadores amadores. "Mas, se a pessoas nos veem assim, temos nossa parcela de culpa".

Será por isso que há pouquíssima presença feminina no meio? Amauri José, professor de Física e Astronomia do Planetário, tem outra tese. "Como é uma atividade noturna, os pais normalmente não liberam as adolescentes para as saídas de campo", afirma.

Seja como for, entre os 23 membros do Nevoeiro, apenas três são mulheres. Uma delas, a estudante Elaine Martins, entrou no grupo por influência do tio, Marcelo. As outras são namoradas ou mulheres dos integrantes. As parceiras que não participam das atividades também não se incomodam.

"Minha mulher sabe que somos apenas um bando de marmanjos olhando para o céu. É a nossa pelada do fim de semana", compara Reginaldo. "Na maioria das vezes, a gente come pizza, toma vinho e ri bastante", admite Marcelo.

Mas, afinal, qual o grande barato da Astronomia amadora? "Com os instrumentos, você vê o céu de uma forma totalmente diferente. Às vezes, a noite passa e não se consegue ver tudo", afirma Reginaldo.

Para Bertholdo, trata-se de uma reminiscência da infância. "Esse fascínio pelo universo é uma coisa que vai estar dentro da gente para sempre. Eu resumo tudo isso numa só palavra: encantamento".

ASTROLOGIA NÃO!

"Você está sozinho e de repente vê a Galáxia de Andromeda. Mas vai dividir isso com quem?", diz Marcelo Martins, do Nevoeiro, explicando a proliferação dos grupos independentes.

O investimento para começar a observar o céu não é pequeno. Um binóculo razoável custa cerca de R$ 200, enquanto uma luneta simples não sai por menos de R$ 800. Os astrônomos amadores, no entanto, recomendam que os interessados primeiro se envolvam com um grupo antes de comprar os equipamentos.

"A maioria das pessoas desiste porque compra um instrumento e não sabe o que fazer com ele. Um telescópio não é uma torradeira", ironiza Reginaldo. Ele ainda conta que alguns integrantes do Nevoeiro não têm sequer um binóculo, porém participam com frequência das saídas de campo.

Com ou sem equipamento, os novatos só não podem cometer a gafe de confundir Astronomia com Astrologia (ainda que as duas correntes tenham nascido juntas). "Isso é o que mais incomoda os astrônomos", admite Amauri, do Planetário do Colégio Estadual. "Mas, como gente de ciência, não podemos dizer que a Astrologia não tem fundamento".

Outro engano comum é associar a Astronomia à Ufologia. "A população que mais observa o céu é a dos astrônomos. E ninguém nunca viu um Ovni. Esse é o maior argumento contra a Ufologia", afirma o professor Bertholdo - sem descartar, é claro, a existência de vida extraterrestre.

Ano Internacional da Astronomia

por OMAR GODOY
com fotos de LETÍCIA MOREIRA
janeiro de 2009